Traficantes da Guiné-Bissau usam a Gâmbia como refúgio

O país vizinho tem funcionado como um espaço de recuo e de passagem para guineenses implicados em casos importantes de tráfico de cocaína

A Guiné-Bissau tem vindo a ser palco de incidentes relacionados com o tráfico internacional de cocaína, envolvendo políticos e oficiais de alta patente da polícia e em que surgiram ligações à Gâmbia.

Um dos nomes no centro dessa controvérsia é Amadu Lamine Conte, também conhecido como “Du”, um dos candidatos a deputado da nação nas eleições legislativas deste ano, na lista do Partido da Renovação Social (PRS).

Durante a campanha eleitoral, Lamine Conte foi visto com seguranças encapuzados de nacionalidade serra-leoneses. Segundo uma fonte da Polícia Judiciária (PJ), o político está a ser investigado como suposto chefe de uma quadrilha de traficantes com ligações à Serra Leoa.

Apresentado à imprensa e aos cidadãos como oficial do exército da Guiné-Bissau, o político foi acusado de estar envolvido no esquema de tráfico de novecentos (900 kg) quilogramas de cocaína roubados por Nuno Miguel Sanha, vulgarmente conhecido como Samory, e Carlos Elitiano Silva (Ely), um oficial de alto escalão da Polícia de Intervenção Rápida. O caso foi baptizado com o nome Operação RED.

Esta investigação teve início quando, em outubro de 2021, um navio de bandeira libanesa, o “La Rosa”, foi interceptado ao largo de Dakar, a caminho de Serra Leoa. A bordo foram encontrados 2026 quilos de cocaína. Alegadamente, a droga teria sido carregada na Gâmbia. No navio seguia um indivíduo guineense, que, segundo uma fonte da PJ, é familiar de Lamine Conte.

A intenção original da PJ era rastrear 900 quilos de cocaína introduzidos na Guiné-Bissau por essa rede. Embora tenham encontrado cinco quilos de cocaína e detido o proprietário da casa onde essa droga foi descoberta, o resto da droga desapareceu, alegadamente roubada pelo grupo de Samory e Ely.

Os detalhes desta trama complexa revelam uma teia de corrupção e atividades ilícitas que permeiam certos setores da sociedade guineense.

Segundo a investigação policial do caso, a droga deveria ter sido guardada em segurança depois de ter sido inicialmente entregue a Ivan Sampaio, um funcionário da companhia de aviação portuguesa TAP.

No entanto, e ainda de acordo com o que foi apurado na altura pela Polícia Judiciária, Samory e Ely conseguiram roubar essa carga numa residência no bairro de Antula, ao lado do supermercado Darling, propriedade de Lucas Rocha, um empresário do ramo funerário.

As investigações levaram a polícia ao bairro da Ajuda, em Bissau, onde os inspectores acreditam que a maior parte da cocaína foi escondida, mas no fim não encontraram nada.

Em Abril de 2022 , o Tribunal Regional de Bissau condenou Lucas Rocha a três anos de prisão suspensa e Domingos Mbatche a dez meses de prisão suspensa por tráfico de droga e atentado à ordem pública. Os restantes arguidos, entre eles Amadu Lamine Conte, foram absolvidos de todos os crimes.

Pelo menos cinco indivíduos implicados na Operação RED, incluindo Lamine Conte, continuam sob investigação. A PJ acredita que a droga terá sido levada para a Guiné-Bissau por uma rede internacional com ramificações na Bolívia, no Brasil, no Senegal na Gâmbia e em Serra Leoa.

Este escândalo, com as suas ligações às forças armadas e à política, lança uma luz crua sobre as profundezas da corrupção e do tráfico de drogas na Guiné-Bissau, destacando a necessidade de uma ação rigorosa para restaurar a integridade e a legalidade no país.

A fuga de Seidi Bá

Num cenário marcado pelo tráfico de drogas e pelo poder das redes criminosas, o nome de Braima Seidi Bá destacou-se como um dos mais influentes e misteriosos personagens da Guiné-Bissau. Também ele tem ligações à Gâmbia.

Este guineense é conhecido pela sua suposta participação como um dos líderes do grupo criminoso identificado na Operação Navarra, uma investigação da Polícia Judiciária guineense que levou, em agosto de 2019, à apreensão de 1869 quilos de cocaína, a maior de sempre na Guiné-Bissau.

A Operação Navarra foi possível graças ao enfraquecimento das facções militares que apoiavam diferentes chefes do tráfico de droga.

Apesar disso, Seidi Bá não chegou a ser detido e foi julgado à revelia em março de 2020.

Segundo informações exclusivas de uma fonte anónima ligada aos serviços secretos da Gâmbia, um oficial superior da Polícia Judiciária da Guiné-Bissau teria avisado Seidi Bá sobre sua iminente prisão. Isso levou o traficante a esconder-se em Bissau, onde permaneceu fora do alcance das autoridades durante dias, senão semanas.

Essa versão é, contudo, disputada por uma fonte judicial guineense, que assegura tratar-se de uma informação falsa. “Se alguém tivesse eventualmente avisado Seidi Bá, nenhum dos cúmplices, incluindo o próprio irmão dele, teria sido preso”, diz essa fonte.

Na Operação Navarra, foram detidas dez pessoas: seis guineenses, três colombianos e um maliano. Além de Seidi Bá, o outro líder do grupo de tráfico, o colombiano-mexicano Ricardo Ariza Monje, também conseguiu não ser apanhado.

No julgamento na primeira instância, no Tribunal Regional de Cacheu, Seidi Bá e Ariza Monje foram condenados à revelia a 16 anos de prisão, enquanto os outros dez arguidos foram condenados a sentenças entre quatro e 14 anos de cadeia.

Sete meses depois, em outubro de 2020, o Tribunal de Recurso de Bissau reduziu drasticamente as penas e, já em junho de 2022, o Supremo Tribunal de Justiça guineense acabou por absolver Seidi Bá e Arija Monje.

Apesar da absolvição, Seidi Bá manteve-se na Gâmbia, onde investiu em propriedades.

O seu suposto envolvimento no tráfico de drogas e a sua influência na região reflectem a complexidade das operações do tráfico de drogas na África Ocidental.

De acordo com um relatório de investigação da Iniciativa Global contra o Crime Organizado Transnacional (Gitoc), a Guiné-Bissau é um ponto de entrada fundamental para a cocaína na África Ocidental, uma região que funciona como ponto de trânsito nas rotas internacionais de tráfico de cocaína entre os países de cultivo na América Latina e os mercados de consumo final na Europa. O estreito envolvimento da elite político-militar da Guiné-Bissau no mercado de cocaína ao longo dos anos tem sido um factor crítico nos repetidos ciclos de turbulência política da Guiné-Bissau.

Por sua vez, os lucros do mercado da cocaína financiaram uma rede de proteção de elite composta por elementos que fazem parte do Estado.

Publicado a 22 de julho de 2022, este relatório considera alguns factores de conflito na Guiné-Bissau, em que o comércio de cocaína surge tanto como motor da instabilidade política no país, como fonte de resiliência para acordos de partilha de poder entre as elites.

O caso de Braima Seidi Bá é um exemplo dos desafios enfrentados pelas autoridades na luta contra o tráfico de drogas na África Ocidental e remete para a necessidade da cooperação internacional e da aplicação de medidas eficazes para conter a influência de empresários criminosos nesta região.

A Guiné-Bissau foi identificada como o primeiro narco-estado de África pelas Nações Unidas. Este país da África Ocidental oferece uma rota alternativa para o transporte de cocaína da América do Sul para a Europa, devido à sua localização geográfica e ao facto de ter elites militares e políticas corruptíveis e com ligações a redes de tráfico latino-americanas.

Apesar do envolvimento de elementos do Estado e da sua posição ativa na economia do tráfico, o país não gosta de ser rotulado como um narco-estado.

Governos sucessivos expressaram compromisso em combater este fenómeno, mas a realidade é complexa.

Um país bom para fugir

À medida que a pressão aumenta sobre a Guiné-Bissau para conter o tráfico de cocaína, alguns dos grandes traficantes buscam refúgio na vizinha Gâmbia, tornando-a um destino atraente.

Mas porquê a Gâmbia e porquê agora?

Um polícia sénior, com mais de 20 anos de experiência em investigações relacionadas com o tráfico de droga, explicou que a mudança de governo na Gâmbia desempenhou um papel importante.

“No regime anterior, apesar das acusações de tráfico de droga contra o ex-presidente Yahya Jammeh, o governo era firme em relação a este tópico. Com a mudança de governo, o país passou a adotar o estado de direito e a independência do poder judicial, tornando-se mais atrativo para traficantes experientes”, explicou, acrescentando: “A corrupção também desempenha um papel significativo, com a percepção de que é possível subornar para escapar às consequências. Quando os criminosos acreditam que podem passar pelo devido processo legal e, por razões técnicas, serem absolvidos, eles vêem a Gâmbia como uma opção viável.” 

Recentemente, vários cidadãos guineenses de Bissau foram detidos tentando contrabandear cocaína para a Europa através do Aeroporto Internacional de Banjul. Por detrás desses “correios humanos” estão os magnatas do tráfico, os principais traficantes, que quase nunca carregam cocaína consigo fisicamente.

Nos bastidores da luta global contra o tráfico de drogas, uma operação notável e pouco conhecida desenrolou-se entre a Guiné-Bissau e a Gâmbia, revelando os desafios, as intrigas e os mistérios que cercam esse comércio ilícito.

A Polícia Judiciária da Guiné-Bissau, apesar dos desafios políticos e interferências, tem-se destacado na luta contra o tráfico de drogas. Num episódio revelador, solicitou à Gâmbia a extradição de Nuno Miguel Sanha — ou Samory —, por causa da acusação que ele enfrentava no âmbito da Operação RED.

A resposta da Agência de Controlo da Droga da Gâmbia (DLEAG) foi rápida, prendendo Samory a 11 de novembro de 2021. No entanto, como aconteceu com outros casos, nenhuma cocaína foi encontrada em sua posse ou na sua residência.

A Gâmbia tem um memorando de entendimento tripartido com a Guiné-Bissau e o Senegal, estabelecendo obrigações legais para entregar arguidos, como era o caso de Samory.

Entretanto, o desfecho da extradição de Samory foi tudo menos convencional. Após a prisão, Samory contratou o advogado Lamin S. Camara, que entrou com uma providência cautelar contra a extradição. Surpreendentemente, em apenas 24 horas, o juiz Oledi Uko Oduma concedeu a providência cautelar. Documentos do tribunal revelam que o Ministério Público local não chegou a contestar essa providência cautelar.

A situação atingiu o seu ápice na fronteira de Giboro, onde a entrega de Samory foi anulada com uma nota de cancelamento manuscrita, e o guineense foi devolvido à Gâmbia. Posteriormente, foi libertado sob fiança, com a condição de apresentar um título de propriedade de um cidadão gambiano como garantia.

Mais tarde, Samory acabou por ser absolvido na Operação RED em Bissau.

Esta história ilustra a complexidade das operações transfronteiriças relacionadas com o tráfico de drogas, bem como as intrigas legais e os desafios que permeiam esse mundo sombrio, muitas vezes escapando à atenção do público em geral.

Matilde Blanchard

Este artigo teve o contributo de Lamin Jahateh, na Gâmbia

Esta investigação foi apoiada pela Iniciativa Global contra o Crime Organizado Transnacional (Gitoc), numa colaboração entre jornalistas da África Ocidental e do Brasil. No entanto, o jornalismo praticado é totalmente independente e a reportagem não exprime necessariamente as opiniões da Gitoc.

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