Frequentemente utilizada, a expressão “jabuticaba brasileira” descreve algo que é exclusivo do Brasil e que não existe em nenhum outro lugar do mundo. Na chamada “Era de Ouro da Globalização”, que ficou definitivamente para trás, caracterizada pela ambição de economias nacionais abertas e desreguladas, as nossas “jabuticabas” muitas vezes eram vistas como indesejadas.
Com a emergência da “nova economia”, marcada pela priorização de interesses nacionais e pela emergência da agenda climática, é preciso construir um outro olhar sobre as nossas peculiaridades, particularmente no que tange as estratégias de descarbonização da matriz de transportes do país.
Neste contexto, uma das jabuticabas que merece destaque é a tecnologia dos carros flex, surgida em 2003, no Brasil, com o lançamento do Gol 1.6 Total Flex. De forma pioneira e disruptiva, a tecnologia trouxe a possibilidade de escolha entre gasolina, etanol ou a mistura desses dois combustíveis em qualquer proporção para abastecimento dos veículos.
O carro flex foi uma inovação da indústria automotiva no país, que abriu relevante avenida de crescimento do etanol para fins combustíveis e geração de valor pelo setor sucroenergético.
Naquele ano, o setor produzia 14,7 bilhões de litros de etanol. Desde então, a agroindústria mais que duplicou a produção de etanol para os atuais 31,0 bilhões de litros, considerando o etanol de cana-de-açúcar e o etanol de milho. Passados 20 anos, a cadeia sucroenergética movimenta hoje um valor bruto superior a US$ 100 bilhões e registra um PIB de, aproximadamente, US$ 40 bilhões, além de gerar US$ 13,4 bilhões em divisas externas com as exportações de açúcar e de etanol.
Para além do valor econômico gerado no país, existem também as externalidades socioambientais da produção sucroenergética, amplamente conhecidas. O consumo de etanol pelos veículos flex em substituição à gasolina reduz as emissões de gases de efeito estufa (GEE) em até 90%. Desde o lançamento dos veículos flex no Brasil, o consumo de etanol para fins combustíveis no país reduziu a emissão de gases de efeito estufa (GEE) em mais de 630 milhões de toneladas de CO2eq12, o equivalente ao plantio de 4,5 bilhões de árvores.
A contribuição da geração de bioeletricidade, a partir da biomassa de cana, para a rede é relevante – 18,4 TWh em 2022, o equivalente a 15,4% de todo consumo residencial do Brasil no ano – o que traz uma série de benefícios, entre os quais, a poupança nos níveis de água nos reservatórios das hidrelétricas do subsistema Sudeste e Centro-Oeste. E não menos importante, a cadeia de valor sucroenergética emprega 2,1 milhões de pessoas, considerando diretos e indiretos.
Olhando para frente, o potencial de geração de valor econômico e socioambiental da cadeia sucroenergética é ainda mais promissor, com destaque para novos produtos – como biogás, nosso “pré-sal caipira”, e o biometano – e novos usos, como a produção de insumo para combustíveis renováveis na aviação e fertilizantes.
A vocação tripartite do setor sucroenergético como provedor de energia renovável, alimentos e rações, incentiva a inovação a ser inerentemente circular, integrando, inclusive, outras cadeias produtivas, ao mesmo tempo que diversifica a renda e maximiza o retorno dos produtores.
Vivemos um ponto de inflexão da mobilidade globalmente e novas tecnologias estão sendo importadas pelo Brasil, entre as quais, os veículos híbridos e os veículos elétricos a bateria, que podem ser alimentados com biocombustíveis ou recarregados com eletricidade.
O estudo “Vigor híbrido: por que os híbridos com biocombustíveis sustentáveis são melhores que os veículos elétricos puros”, conduzido por pesquisadores da USP/UNICAMP/UNESP, mostra que as emissões calculadas de gases de efeito estufa (por quilômetro) para veículos híbridos que utilizam etanol são 26% inferiores às observadas para veículos elétricos a bateria no Brasil.
Além disso, são 47% inferiores para veículos elétricos a bateria na Europa, onde a intensidade de carbono da matriz elétrica é alta comparativamente à brasileira. Os resultados para o biometano para fins combustíveis são ainda mais impressionantes. As emissões por quilômetro para um veículo híbrido com biometano são 43% inferiores às observadas para veículos elétricos a bateria no Brasil e 59% inferiores para veículos elétricos a bateria na Europa.
Os caminhos para a descarbonização da matriz de transportes e da economia brasileira são múltiplos. É preciso, entretanto, priorizar e valorizar as alternativas em que temos diferenciais competitivos na produção e que gerem valor ambiental, social e econômico no país.
Quando é considerado o inventário das emissões de GEE associadas ao ciclo de vida do combustível – desde o “poço até rodas” e as emissões associadas à fabricação de veículos, geração de eletricidade e infraestrutura de recarga – a eficácia ambiental dos biocombustíveis está comprovada. Neste contexto, o etanol precisa se transformar em uma paixão nacional. Afinal de contas, jabuticaba como essa só existe aqui no Brasil.
* Giovana Araújo é sócia líder de agronegócio da KPMG no Brasil.
Obs: As ideias e opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva de seu autor e não representam, necessariamente, o posicionamento editorial da revista Globo Rural
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