Guiné-Bissau: “Comunidade internacional deve retratar-se e exigir retoma da legalidade constitucional”

Em entrevista ao Esquerda.net, Sumaila Jaló defendeu que países como Portugal ou França têm de parar de dar respaldo aos atos inconstitucionais e ditatoriais do presidente guineense. E alertou que o PAIGC, ao negociar com Umaro Sissoco Embaló, está a trair a expressão popular do povo nas últimas eleições legislativas. Por Mariana Carneiro.

A 4 de junho, o povo da Guiné-Bissau expressou nas urnas o seu desejo de derrotar a ditadura de Umaro Sissoco Embaló e caminhar no sentido da democratização do país, após três anos e meio de ataques ferozes à normalidade constitucional e às liberdades democráticas, de perseguições e de escândalos financeiros. A vitória da coligação PAI – Terra Ranka nas últimas eleições legislativas abriu expectativas quanto à retoma da legalidade constitucional e abalou as pretensões do Presidente da Guiné-Bissau no que concerne à sua reeleição já em 2024.

Nesta entrevista, o ativista e investigador guineense Sumaila Jaló descreve as inúmeras manobras a que Sissoco recorreu para contrariar o resultado eleitoral, e que culminaram na dissolução da Assembleia Nacional Popular e na formação de um Governo de “iniciativa presidencial”; a estratégia adotada pelo PAIGC e a coligação PAI – Terra Ranka, que este partido encabeça; os desafios da mobilização popular; e o papel da comunidade internacional, nomeadamente de Portugal.

Na entrevista de setembro abordámos, nomeadamente, o resultado das eleições de junho, em que uma esmagadora maioria escolheu o caminho para a democratização da Guiné-Bissau, o que se traduziu na vitória da coligação PAI-Terra Ranka. E, nessa altura, era mais do que explícito que o atual presidente Umaro Sissoco Embaló não estava disposto a aceitar uma mudança de regime. Desde então, quais foram as manobras de Sissoco para contrariar esse resultado eleitoral?

Na nossa última entrevista, falei do processo que nos levou até às últimas eleições legislativas e, entre muitas questões abordadas, referi a intromissão de Umaro Sissoco Embaló no processo eleitoral, e todas as manobras que vinha orquestrando contra a normal realização do ato eleitoral, porque não estava disposto, como continua a não estar, a conviver no poder com um governo que não tenha vindo do seu partido, o MADEM G-15.

Nas próprias eleições, Umaro Sissoco Embaló já dizia que, mesmo que o PAIGC, neste caso, a PAI-Terra Ranka, a coligação que venceu as eleições legislativas, tivesse ganho todos os 102 assentos parlamentares, ele nunca nomearia para o cargo de primeiro-ministro uma figura do PAIGC. Nem o seu líder, e muito menos outras figuras da liderança que estivessem indiciadas judicialmente, mesmo que essa questão de estarem indiciados judicialmente fosse uma invenção, porque não há nenhuma ação judicial pendente sobre qualquer líder do PAIGC, nem naquela altura, nem neste momento. Esta foi uma forma de intimidar o próprio povo e de começar a manifestar-se contra qualquer solução governativa que não fosse da sua conveniência partidária.

Já depois das eleições legislativas, esperámos dois meses para o que Governo tomasse posse. E um mês e meio para que os deputados eleitos para a 11ª Legislatura fossem investidos, apesar de a lei eleitoral prever um prazo máximo de 30 dias.

Todas estas manobras têm como objetivo adiar o máximo possível tanto a tomada de posse dos deputados no Parlamento como a tomada de posse do novo Governo, por forma a limpar as fichas muito perigosas do quadro governativo de que saíamos. Foram três anos e meio de ataques à normalidade constitucional e às liberdades democráticas, praticados por um regime encabeçado por Umaro Sissoco Embaló. Três anos e meio em que adversários políticos e outras vozes e figuras opositoras ao seu regime foram perseguidos, foram raptados, em muitos casos espancados até à beira da morte.

Mas também de escândalos financeiros. Em 2021, um ano depois da entrada em cena de um Governo inconstitucional, instituído por Umaro Sissoco Embaló, a dívida pública da Guiné-Bissau já se situava em cerca de 79% do Produto Interno Bruto (PIB). Hoje, é mais de 80% do PIB do país. Neste período, foram feitos pagamentos de dívidas internas com critérios muito duvidosos.

Consideras que essas manobras já estavam a preparar terreno para os acontecimentos mais recentes, nomeadamente a dissolução da Assembleia Nacional Popular (ANP)?

Exatamente. Tudo isso consistia em preparar o terreno para a dissolução do Parlamento e a destituição, ambos inconstitucionais, do Governo.

É de referir também que, logo na primeira fase da governação, pouco mais de um mês depois de o Parlamento entrar em funções, se realizaram as comemorações dos 50 anos da independência da Guiné-Bissau. A Assembleia Nacional Popular organizou uma cerimónia, que teve lugar em Madina do Boé, o lugar onde a independência foi proclamada em 1973, com um orçamento que ronda um pouco mais de 100 milhões de francos CFA. O partido do Presidente, segunda maior força política no Parlamento, recusou-se a participar na iniciativa, e lançou acusações graves de que tinham sido gastos cerca de 400 milhões de francos CFA, três vezes mais do que mostraram as contas que depois foram aprovadas numa sessão parlamentar, na qual os representantes do Madem G-15 se recusaram novamente a participar. Na própria conferência de imprensa em que fizeram essa acusação, deixaram um ultimato ao Presidente da República, no sentido de que, se não dissolvesse o Parlamento até julho do próximo ano, sairiam à rua, convocando o povo contra o chefe de Estado.

Posteriormente, surgiram várias conferências de imprensa e vários tipos de acusações que procuravam inventar uma crise política inexistente, uma crise institucional entre a Assembleia Nacional Popular e o Presidente da República inexistente, no sentido de permitir que o Presidente tivesse como dissolver a Assembleia e destituir o Governo para, num ato subsequente, instituir um quadro governativo que lhe fosse favorável para as próximas eleições presidenciais.

Uma Assembleia Nacional Popular que era funcional, e digo isto apesar de todas as diferenças que tenho com o PAIGC. Um Parlamento que assumia as suas atribuições de discutir o aparato legislativo do país, de fazer reformas das leis e criar leis para garantir uma melhor estruturação das instituições democráticas no país, não era favorável a Umaro Sissoco Embaló. Ele tinha que criar um quadro governativo diferente que lhe possibilitasse ter no Governo, particularmente nas instituições que organizam diretamente as eleições, pessoas da sua conveniência.

A 30 novembro fomos confrontados com a notícia de que foram presos, por ordem do Ministério Público, dois membros do Governo. A que é que se deveram estas prisões?

É preciso dizer que o Governo do Umaro Sissoco Embaló, que conduziu os destinos do país nos últimos três anos e meio até às últimas eleições legislativas, tinha assinado um acordo com o Fundo Monetário Internacional (FMI). Uma das condições desta entidade financeira internacional era que o Estado guineense alienasse as suas ações num banco privado do país, o Banco da África Ocidental, em que o Estado da Guiné-Bissau detém cerca de 35% das ações.

Na decorrência disso, o atual Governo, entrando em funções, retomou as negociações com o FMI para aplicação desse mesmo acordo e, consequentemente, uma das condições era que o Estado da Guiné-Bissau liquidasse as suas dívidas com alguns empresários nacionais, também credores do banco em causa.

Segundo as justificações do Governo, era em função destas exigências que se iam pagar, a partir de 2024, cerca de 10 milhões de dólares americanos a um grupo de empresários ligados ao PAIGC, em particular, e a outros partidos que compõem a PAI – Terra Ranka.

Do ponto de vista ético, e do ponto de vista das urgências para o país, e também da gestão das finanças públicas, pessoalmente, não concordo com esses pagamentos. Não se pode ter um país capturado por interesses empresariais ligados aos partidos que disputam o poder e que, simultaneamente, estão em esquemas pouco claros de gestão dos fundos públicos, contra os interesses da própria população.

Mas é preciso dizer que, neste caso, a Procuradoria Geral da República (PGR) interveio e instaurou, de imediato, um processo criminal contra o Ministério das Finanças, iniciando uma investigação sobre os montantes, que nem tinham sido desembolsados pelo banco para o pagamento desses credores ligados à coligação no Governo. E, subsequentemente, foram convocados, para as instalações do Ministério Público (MP), o Ministro das Finanças e o Secretário de Estado do Tesouro. De forma ilegal, os dois governantes foram, posteriormente, conduzidos à prisão.

Portanto, o que nos dizes é que, independentemente de os pagamentos serem questionáveis, como defendes, é um procedimento que decorre de um acordo firmado por um governo anterior. É isso?

Exato. Um acordo que foi firmado por um governo anterior encabeçado por Umaro Sissoco Embaló. Apesar de a Constituição da República não admitir que um Presidente da República seja chefe do executivo, ele dizia “sou o chefe único no país e este Governo é meu e tem de seguir as minhas orientações”.

Naquela altura, o MP não desencadeou qualquer investigação, qualquer processo criminal contra as Finanças. E é preciso recordar que isso aconteceu não só em 2020, mas também em 2021, em 2023, mesmo estando num período eleitoral. Foram cerca de 9 bilhões de francos CFA desembolsados para pagar dívidas supostamente contraídas também com grupos de empresários ligados ao Madem G-15 e a outros partidos que acompanhavam o Presidente da República nesses três anos e meio de agressões contra as liberdades democráticas e de gestão danosa do erário público. Mesmo que esses valores tenham sido superiores aos valores agora em causa, que nem foram ainda desembolsados, a PGR nunca instaurou um processo criminal, muito menos desencadeou uma investigação sobre esses casos. É aqui que entra a certeza de que o MP e a PGR estão ao serviço dos interesses políticos ao lado do presidente.

Nos dias 30 de novembro e 1 de dezembro seguiram-se acontecimentos algo caóticos que foram usados como justificação para a posterior dissolução da ANP. Podes explicar-nos o que aconteceu nesse período?

Esses episódios são, de facto, caóticos. Primeiro, a PGR deteve e colocou em prisão, de forma ilegal, dois membros do Governo, o Ministro das Finanças e o Secretário-Geral do Tesouro. A Guarda Nacional interveio nessa mesma noite, retirando das celas da Polícia Judiciária os governantes, e levando-os para o seu Comando. A Ministra do Interior e o Chefe do Governo garantem não ter dado ordem para essa intervenção. No dia seguinte de manhã, a Guarda da Presidência da República atacou o comando da Guarda Nacional para retirar dessas instalações os dois governantes, contando com o apoio das forças ligadas ao Estado-Maior-General das Forças Armadas. Desta forma, conseguiu-se desmantelar a resistência da Guarda Nacional e retirar da sua guarda os dois responsáveis políticos, que foram devolvidos às celas da Polícia Judiciária. E os atos acabaram ali.

O Presidente da República, que estava em viagem, chegou no dia seguinte, e declarou que aqueles acontecimentos constituíam uma tentativa de golpe de Estado.

Isto apesar de a Guarda Nacional, que estaria supostamente a desencadear essa tentativa, não ter invadido nem a Presidência da República, nem a residência pessoal do Presidente, muito menos tomado de assalto o aeroporto de Bissau ou atacado a base aérea, que é a corporação militar mais fortificada perto do próprio aeroporto. Ou seja, sem que tivesse existido qualquer ação subsequente para derrubar o Presidente da República.

Acresce que a Guarda Nacional é tutelada pelo Ministério do Interior, e não pela Assembleia Nacional Popular. Mas foi, de facto, o Parlamento que foi dissolvido. E falamos de uma dissolução manifestamente inconstitucional, na medida em que o artigo 94º da Constituição da República da Guiné-Bissau refere que “a Assembleia Nacional Popular não pode ser dissolvida nos 12 meses posteriores à eleição”.

O Presidente da República chegou a dizer ter provas factuais, em áudios, de que o golpe teria sido orquestrado pelo presidente do PAIGC e do Parlamento, Domingos Simões Pereira. Mas até hoje, as supostas provas não foram divulgadas, e o principal visado, Domingos Simões Pereira, não foi sequer notificado pela PGR.

Mesmo que os órgãos de comunicação social oficiais, nacionais e internacionais, não contribuam para a denúncia desta orquestração, existem formas de comunicação alternativa, nomeadamente as redes sociais e outras formas de comunicação social não oficiais, que possibilitaram o desmontar dessa falaciosa tentativa de golpe de Estado.

Alguns setores defendem que o Supremo Tribunal se deve pronunciar no sentido da inconstitucionalidade da dissolução da Assembleia Nacional Popular. Esta parece uma opção viável?

Acho que nem se deve conduzir o processo ao Supremo Tribunal de Justiça. Porque vários juristas de reconhecida competência, sendo um deles quem escreveu a Constituição da República da Guiné-Bissau, nomeadamente Jorge Miranda e Emílio Kafft Kosta, que é, seguramente, o maior constitucionalista guineense, foram unânimes em afirmar que o decreto que dissolve a ANP, simplesmente, não existe.

Não é um decreto passível de nulidade. É um absurdo contra a Constituição e contra a legalidade democrática. Por isso, para mim, não se deve levar o processo para o Supremo Tribunal de Justiça.

E Umaro Sissoco Embaló estará interessado na intervenção do Supremo Tribunal de Justiça. Porque, antes de desencadear o golpe contra a ANP, tinha desencadeado um golpe contra a liderança legalmente instituída do Supremo Tribunal de Justiça, com a destituição do seu Presidente, de forma ilegal e à força, inclusive através da ocupação, de novo, das suas instalações por forças da Presidência da República, tendo sido substituído pelo seu primeiro vice-presidente, mais próximo do presidente.

A 12 de dezembro, Geraldo Martins, vice-presidente do PAIGC, foi reconduzido por Umaro Sissoco Embaló ao cargo de Primeiro-Ministro. Aquando da tomada de posse, o presidente afirmou, e passo a citar, “isto é tudo meu, o Parlamento já era e este Governo é meu”. Entretanto, e decorrida apenas uma semana, Sissoco exonerou Geraldo Martins e nomeou um novo Primeiro-Ministro, Rui Duarte de Barros, também ele do PAIGC. O que pensas desta estratégia do PAIGC, que tem optado por negociar com Sissoco? Consideras que o caminho traçado nas eleições, no sentido da democratização da Guiné-Bissau, está em risco?

Existem várias contradições tanto no processo que levou à recondução de Geraldo Martins ao cargo de Primeiro-Ministro, quanto nos discursos nessa mesma cerimónia de posse. As declarações de Umaro Sissoco Embaló foram, mais uma vez, uma expressão do seu caráter absolutista e ditatorial.

Por outro lado, tivemos o dirigente do PAIGC a agradecer a um Presidente com esse discurso pela sua recondução, e a garantir cumprir um programa com que o seu partido concorreu para as eleições que lhe deram uma maioria absoluta no Parlamento, e que resultou na sua nomeação como Primeiro-Ministro num Governo que ainda é legal, que não está legalmente destituído. Aliás, nem se produziu um decreto para a exoneração do seu Governo, e avançou-se para a sua nova nomeação.

Há aqui um conjunto de emaranhados inconstitucionais e ilegais que a própria PAI – Terra Ranka ajuda a concretizar.

A meu ver, esta é uma estratégia suicida muito perigosa por parte do PAIGC e da coligação PAI – Terra Ranka. Na verdade, estão a negociar com uma entidade que produz um decreto inexistente, inconstitucional, para dissolver a Assembleia, e que, não tendo sequer destituído o Governo em funções, vai instituir um novo Governo em que chama a mesma figura indicada pelo PAIGC para encabeçar o executivo.

Creio que a recondução de Geraldo Martins decorria, em parte, das pressões de que deverá estar a ser alvo Umaro Sissoco Embaló por parte de entidades da comunidade internacional, que este considera muito na sua estratégia populista. O presidente criou até um conceito de diplomacia agressiva, no sentido de capitalizar as suas viagens ao exterior, as figuras de governo e dos Estados que o recebem e higienizam a sua ditadura. As entidades internacionais são muito importantes para a sua afirmação política, tanto a nível nacional como internacional.

Por outro lado, creio é uma tentativa de semear discórdia no seio do PAIGC, e procurar tirar dividendos disso. A própria nomeação de Rui Duarte de Barros, deputado eleito nas listas da PAI Terra Ranka e destacado quadro dirigente do PAIGC, entra nesta estratégia sissoquista de “dividir para melhor reinar”. O PAIGC é um partido internamente muito instável. Aliás, depois da recondução de Geraldo Martins ao cargo de Primeiro-Ministro, existiram várias tomadas de posição internas no PAIGC que questionavam o processo que conduziu a todas aquelas situações. Houve setores que se aproveitam deste momento internamente no PAIGC para afirmarem a sua posição à atual liderança do partido. Setores reconhecidamente próximos a Umaro Sissoco Embaló, que não deixa de ter interesses de ter mãos no PAIGC, que é uma estrutura política importante no quadro da Guiné-Bissau. Ele sabe que ter mãos nas estruturas do PAIGC facilita-o a concretizar o seu projeto absolutista na Guiné-Bissau.

Mas é preciso que o PAIGC saiba que a maioria absoluta que lhe foi atribuída pelo povo foi no sentido de contrariar um regime absolutista, violento, antidemocrático, que esteve à frente do país nos últimos três anos e meio. Negociar com esse regime é uma traição à expressão popular nas últimas eleições legislativas. E o povo da Guiné-Bissau está atento. Hoje, mesmo parecendo que não para quem está longe, o povo da Guiné-Bissau é muito atento ao debate político e ao que acontece na luta pelo poder. Desde a instituição da democracia sempre soube sancionar fações políticas que o tenham conduzido para situações de instabilidade e desgovernação.

Em junho, a juventude guineense, os movimentos sociais fizeram uma escolha no sentido do aprofundamento da democracia, permitindo, com o seu voto, uma vitória, com maioria absoluta, da coligação PAI – Terra Ranka. Qual é o seu papel neste momento, perante mais um ataque de Sissoco à Constituição e às leis do país e perante aquilo que pode ser visto como uma traição do PAIGC?

Ao longo dos três anos e meio, houve um movimento social muito diverso e também complexo internamente que se posicionou sempre contra a ditadura instituída por Umaro Sissoco Embaló. Houve sindicatos dos trabalhadores que, para além do recurso às greves como forma de reivindicar melhores condições de trabalho, tiveram nas suas agendas a defesa das liberdades democráticas, e organizaram várias manifestações de rua contra o regime. Entre 2021 e 2022, tivemos 12 meses de greves e manifestações incessantes contra o regime, nomeadamente da União Nacional dos Trabalhadores da Guiné-Bissau e, particularmente, das organizações sindicais das áreas da Educação e Saúde, dois setores sociais muito importantes, que contrariaram a lógica da ditadura, mesmo num quadro em que as autoridades impediam as manifestações públicas, em que vários líderes sindicais foram presos, foram perseguidos, outros obrigados a exilar-se. Essas resistências não cessaram e tiveram papéis importantes na derrota da família política de Umaro Sissoco Embaló nas últimas eleições legislativas. Houve movimentos estudantis a reclamar pela reabertura das portas das escolas públicas, que encerraram por completo ao longo desses três anos e meio. Houve uma mobilização das diásporas guineenses em vários países do mundo, a partir de Portugal, de onde falamos, da França, do Senegal, do Luxemburgo e de outras localidades onde vivem guineenses mobilizados contra as forças opressoras instituídas na Guiné-Bissau.

Manifestantes durante uma vigília pela diáspora de guineenses em Portugal. Foto de Filipe Amorim, Lusa.

Havia também um movimento identificado que, entre 2015 e 2019, até à suposta eleição de Umaro Sissoco Embaló, neste caso, o Movimento dos Cidadãos Conscientes e Inconformados (MCCI), de que eu fazia parte, que pavimentou um caminho para chegarmos aqui. Mas houve um papel importante do próprio PAIGC para a dissolução deste movimento, o que é muito importante referirmos aqui. O partido capturou parte da liderança do movimento como forma de esvaziar a sua capacidade de mobilização, porque, em 2019, tinha vencido as eleições legislativas, mesmo que com uma maioria relativa, e o MCCI representava uma certa ameaça para as suas pretensões políticas.

Esse esvaziar do espaço de mobilização do MCCI, que era o movimento social mais expressivo entre todos os espaços de mobilização social, criou uma certa reticência da massa popular em relação aos movimentos sociais. Dificultou, nos períodos subsequentes, a mobilização do povo através dos movimentos sociais.

Isto apesar de, com os movimentos sindicais, com os movimentos estudantis, com os guineenses nas diásporas termos tido, ao longo dos três anos que se seguiriam, muitas mobilizações e várias formas de resistência.

Por isso, neste momento, para além de o PAIGC e a coligação estarem metidos em todas estas contradições de que falámos, a juventude e as pessoas representadas nos movimentos sociais não se sentem identificadas com essas sensibilidades, com os partidos que compõem a coligação que obteve a maioria. O apoio a essa coligação nas legislativas foi por uma questão pragmática e objetiva, de derrotar a ditadura de Umaro Sissoco Embaló, o que jogou a favor da PAI – Terra Ranka.

Portanto, este ambiente de desconfiança em relação aos movimentos sociais dificulta, de certa forma, uma mobilização expressiva neste momento para contrariar o golpismo de Umaro Sissoco Embaló. Mas continua a haver movimentos disponíveis e que, neste momento, estão a trabalhar em mobilização popular, que só terá uma expressão capaz de colocar em causa as pretensões absolutistas do presidente se tiver, do outro lado, um posicionamento político coerente e firme da PAI – Terra Ranka a favor das liberdades democráticas e em defesa da legalidade constitucional. O que não tenha havido.

E, talvez também por isso, a própria PAI – Terra Ranka não tenha coragem de avançar para a convocação do povo, porque, neste momento, o próprio povo está massivamente a questionar, e publicamente, as escolhas da coligação de negociar com Umaro Sissoco Embaló em atos advindos de práticas inconstitucionais e de agressão à legalidade democrática no país.

Aliás, a PAI – Terra Ranka tem repetido nas suas comunicações apelos incompreensíveis à calma do povo, que é uma forma de desmobilizar o povo para uma reação popular. A coligação prefere negociar com Umaro Sissoco Embaló os seus atos gritantemente inconstitucionais, do que confiar no poder popular e, com ele, contrariar a ditadura que se está a aprofundar no país.

Em todo este contexto, face às dificuldades e complexidades que já enumeraste, o que deve ser exigido à comunidade internacional?

Para mim, é uma questão muito simples. Quando as entidades internacionais se pronunciam a favor da legalidade constitucional estão a dizer indiretamente a Umaro Sissoco Embaló que desista do seu decreto inexistente, que devolva a possibilidade de governação a quem o povo atribui uma maioria parlamentar.

É importante dizer que tanto a última cimeira dos chefes de estado da CEDEAO, como o líder da Assembleia Geral das Nações Unidas, Dennis Francis, já se pronunciaram em defesa da retoma da legalidade constitucional.

Mas esses pronunciamentos têm de ser mais claros. Não digo isso por pensar que essas entidades devem substituir o povo da Guiné-Bissau na sua missão soberana de lutar pela democratização no nosso país, mas porque têm tido um papel importante no fortalecimento da ditadura do Umaro Sissoco Embaló. É por isso que as mesmas instâncias, até para demonstrarem estar do lado da legalidade democrática, que é um dos valores que dizem defender, devem posicionar-se de forma clara em relação aos atos escancaradamente inconstitucionais de Umaro Sissoco Embaló. Devem exigir que o Presidente desista do decreto que dissolve inconstitucionalmente a Assembleia Nacional Popular, que devolva a possibilidade de governação a quem o povo atribuiu a maioria absoluta. Bem como que seja realizada nova eleição do presidente do Supremo Tribunal de Justiça, de modo a retomar o caminho da legalidade nessa instituição fundamental para a fiscalização da aplicação da lei e do quadro democrático na Guiné-Bissau. E permitir que esse órgão possibilite também a eleição de novo Presidente da Comissão Nacional das Eleições.

Este seria o quadro para a retoma do caminho da normalidade democrática na Guiné-Bissau. Estes pronunciamentos tímidos só dão azo a que Umaro Sissoco Embaló continue a assumir posições como tem assumido, de que o governo é dele, o primeiro-ministro é dele, a Assembleia já não existe, o único chefe é ele.

Entidades e figuras como Macron continuam a receber Umaro Sissoco Embaló em atos oficiais transmitidos por órgãos de comunicação social, como que a legitimar todos os atos inconstitucionais e agressões à democracia no nosso país.

Portanto, é mais uma questão de essas entidades se retratarem. No caso do próprio Estado português, em particular, é curioso que a Presidência da República se tenha pronunciado de forma muito rápida contra uma suposta acusação do Presidente do Parlamento e do PAIGC, mas o mesmo Estado português, através do Presidente da República, e do Primeiro-Ministro, e também da Assembleia da República, esteja em silêncio em relação aos atos ilegais e inconstitucionais a serem praticados por um “amigo pessoal” dos dois mais altos estadistas em Portugal.

Marcelo Rebelo de Sousa, Umaro Sissoco Embaló e António Costa durante a inauguração de uma rua com o nome do Presidente da República de Portugal em Bissau, Guiné-Bissau, 16 de novembro de 2023.

Todas estas questões estão em jogo, e é por isso que essas entidades, não em substituição dos guineenses, repito, mas por uma questão de se retratarem a si mesmas, devem assumir posições mais claras em relação aos atos inconstitucionais e ditatoriais de Umaro Sissoco Embaló na Guiné-Bissau.

Porém, esses posicionamentos devem também chamar a atenção da oposição guineense no sentido de garantir maior coerência no seu posicionamento contra os desmandos do Umaro Sissoco Embaló, porque, definitivamente, negociar com Umaro Sissoco Embaló é dar-lhe a possibilidade de pensar que os seus desmandos são enquadráveis legalmente e que são parte da normalidade democrática e constitucional, que não são.


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