1. Trabalhadores chineses nuns estaleiros, assim abre o filme. O trabalho pesado da mão-de-obra deslocada remete-nos logo para a globalização do mundo laboral, inserindo num primeiro plano a visão geopolítica que atravessa todo o filme. Não haverá identificação toponímica ao longo do mesmo, mas sei (intuímos) que estamos em São Vicente, Cabo Verde.
Passamos para a aridez cercada de mar que compõe esta ilha, e os seus caminhos de cabra, do Monte Verde à Ribeira Julião. Percebemos as condicionantes do espaço e o momento, mais duradouro do que possa parecer, de transformação que o filme se propõe a testemunhar.
A sinopse sintetiza bem a tese de As Cidades e as Trocas, de Luísa Homem e Pedro Pinho (2014), “O filme procura fazer um registo silencioso da chegada de uma economia de escala, dos seus fluxos e dos seus efeitos na transformação da paisagem física e humana de uma ilha”. O título provém d’As Cidades Invisíveis, de Italo Calvino, que descreve a viagem de Marco Polo pelas cidades do império Mongol, elegendo a singularidade de cada uma na sua paisagem e construção pelos seus habitantes.
2. As trocas. Uma sequência documenta o jogo tenso entre as várias escalas da economia. O processo de devir-mercadoria-produto-habitação: no cenário de gruas e contentores do porto, a areia descarregada será transportada, peneirada, transformada em cimento, em tijolo, com o qual as casas são feitas. Avistamos as casas na paisagem, constata-se que os afetos das casas vêm da matéria mas que raramente sabemos quem as construiu.
Da mão-de-obra chinesa alternamos para trabalhadores caboverdianos no interior de uma casa em construção. Juntamon no trabalho, alegria na hora da refeição. Parêntesis imperioso para elogiar a construção civil em Cabo Verde, que tem sido pautada por soluções criativas que contrariam a escassez tecnológica e de materiais. As casas inacabadas, pelos imprevistos e indisponibilidade de verba que assolam a obra e porque feitas à medida das possibilidades, são frequentes no desenho das colinas da ilha. Um modo de estar na paisagem e talvez na vida. Esse aspeto manifesta uma liberdade na composição da própria criação urbana, como descreveu a arquiteta Cristina Salvador a propósito das casas crioulas: “crescem em altura, trepando e debruçando-se sobre a rua, justapondo-se numa construção em lego, improvisada, frequentemente inacabada, edifícios parados no tempo e outros sempre crescendo, sem se perceber se se constrói ou desmonta, em alçados de composição livre, exuberantes mas minuciosos”, em “Cidade trazida/cidade levada”, revista Dá Fala, nº 2 (2004).
Da luta para sanar necessidades reais de habitação, o filme desloca-nos para a alegria do Carnaval: o grupo Mandingas prepara-se para descer do morro à cidade. Misturam óleo Fula e de pilhas com alcatrão, camuflam-se de preto, montam as saias de palha e ensaiam os passos de dança com os quais há anos, entre susto e provocação, desfilam no Carnaval do Mindelo recuperando uma vaga matriz da África continental, tantas vezes omissa nas questões identitárias caboverdianas. São figuras grotescas que andarilham, entre a turba, num divertido jogo de repulsa e atração.
Faz-me pensar na distância e desconhecimento (e não raro racismo) da parte de cabo-verdianos em relação aos africanos da costa ocidental.
Mas no filme fica-nos a sensação de tédio e ruas pachorrentas do centro do Mindelo, alimentando o suspense prévio à invasão de música, danças e mascarados provenientes de todos os pontos da ilha, que ali desaguam nos dias carnavalescos. Os mais agitados do calendário.
3. Finalmente chegamos ao outro lado do assunto do filme: o turismo. Os turistas desembarcam nos seus cruzeiros (uma breve imagem dos navios em Lisboa faz a ligação com o turismo europeu). Ouve-se falar alemão. Os turistas passam num transfer já em terra a acenar para as câmaras. Meio desorientados e algo patéticos, fazem retratos uns aos outros e fotografam as praias e as montanhas. No contexto global da proliferação do turismo e de crescente especialização da oferta, que tem Cabo Verde para oferecer? O clima tropical, as paisagens – relevos das montanhas quebrados pelo mar, a praia, o descanso, caminhadas, uma certa vida cultural, o ambiente melancólico da morna (embora quem quiser furar a bolha da oferta rudimentar, encontrará, nomeadamente em São Vicente, programas de teatro, e vida nas “fraldas da cidade”). Para além da praia, a morabeza e a gentileza dos crioulos são outros atrativos das ilhas vulcânicas.
Perante a escassez de estímulos, pequenas peripécias como um carro atolado, podem fazer o entusiasmo do turista, vemos no filme, que se calhar irão contá-las como “uma aventura no trópicos”.
4. No porto do Mindelo os rapazes acotovelam-se para serem chamados, revelando a precariedade do trabalho à jorna. Num refeitório para os trabalhadores com a familiaridade da D. Ilda, uma espécie de “mãe de fidj” de todos, mergulhamos no caloroso ambiente de apoio aos trabalhadores portuários. Em Ilda d’Cais cozinham juntos e não faltam tarefas de produção e de consumo, as meninas vão vender croquete e pizza no porto, há muito grogue e diversão e, ao fim do dia, há quem recolha a casa de pickup. Vemos os trabalhadores do turno da noite, assistimos às tocatinas noturnas num bar que, de dia, é loja de roupa, onde a saudade é cantada com mais comoção à medida que a bebedeira avança.
5. Plano sobre a avenida Marginal: os turistas calcorreiam-na em passeio, os caboverdianos em trabalho. A acumulação de imagens vai criando um olhar paralelo, de um mundo que interage mas mutuamente se desconhece. Começamos então a descortinar uma linha de leitura do filme. Os dois mundos são-nos dados a ver num certo maniqueísmo, notoriamente assumido pelos realizadores. De um lado, a resiliência dos ilhéus e a sua capacidade de aproveitar os parcos recursos. Os caboverdianos lutadores que resistem aos constrangimentos que os fustigam, cuja vida difícil é atenuada por relações interpessoais de solidariedade e de alguma alienação. Aqueles que têm de colaborar no jogo do turismo como uma das escassas indústrias e emprego que se lhes oferece. Noutro lado do espelho, os turistas que ali passeiam, também alienados na sua lógica desterritorializada: tanto faz estarem naquela ilha específica como noutro lado qualquer, não apreendem grande coisa da cultura local, mantendo apenas relações comerciais com aquele lugar. Podem vibrar muito e até apaixonar-se, podem mudar de vida, mas podem sempre escolher.
Dependem uns dos outros. Pode dar-se o caso de mutuamente se invejarem.
Imagens fortíssimas, ao longo do filme, vão contribuindo para esse jogo especular. No interior dos barcos, máquinas manejadas por operários fazem funcionar a máquina do turismo. Um plano do alto mar perturba de enjoo, o enjoo para quem trabalha significa fruição para quem viaja. Uma cratera anuncia-se no desmantelar da areia na encosta que vem sendo picada com varas para servir de cimento. No interior da ilha, o pequeno oásis de hortas e de cabras, onde uma família trabalha em economia de equilíbrio, com uma gestão inteligente dos recursos, à medida das necessidades. A preciosidade da água, os minis tomates resistentes à adversidade, a criança que brinca e trabalha.
6. As pinturas naïfs e populares nos restaurantes de São Vicente, nomeadamente no restaurante Hamburgo, no Calhau, não longe da Baía das Gatas (outro ponto turístico da ilha) contrastam com a decoração das Arábias no resort da ilha da Boavista, onde o turismo é mais massificado. Reconhecemos a caricatura do turismo de resort. Vemos turistas a fazer hidroginástica, vemo-los sentados no bar da piscina com caipirinhas. Todos colaboram no engodo: o espetáculo de animação, feito por caboverdianos para turistas, reproduz uma imagem de África com danças tribais, totalmente desenquadrada da cultura de Cabo Verde. A discoteca convida os turistas a soltarem a sua expressividade, expostos num certo ridículo perante o contraste com a sensualidade dos crioulos.
A porta de serviço para os caboverdianos que trabalham nesses empreendimentos estrangeiros faz-nos perceber que ali se encerra o mundo distinto da vida de todos os dias e da maior parte da maioria dos cidadãos. Ou seja, o turismo massivo existe e vem crescendo, traz transformações às dinâmicas de vida dos caboverdianos, mas tem um lugar para acontecer que será o resort, uma bolha protetora dos turistas, um não-lugar do turismo.
7. Como refere David MacDougall, a propósito do filme etnográfico, nenhum filme será apenas um mero retrato de outra sociedade, trata-se de um encontro entre o realizador e a sociedade que o interessou. Em As Cidades e as Trocas esse encontro está presente num posicionamento evidenciado no olhar dos realizadores Pedro Pinho e Luísa Homem contra o modo como o turismo e a economia de escala afetam a experiência, desfazem uma possibilidade de ritmo da vida próximo do ritmo da natureza, do trabalho segundo as necessidades, da curiosidade genuína pelo que vem de fora, degenerada e boicotada por relações interesseiras e de serviços. A hipótese de mercantilização da ilha, como consequência da transformação da paisagem física e humana, não existe sem a, igualmente importante, sugestão de elementos que resistem a tudo isso, fundamental para se perceber que nem tudo será domesticável. Podem ser apenas relações de interesse que coexistem com o modo de viver dos ilhéus, influenciando-o pelo acenar da cultura cada vez mais ocidentalizada, mas não tomada.
A abordagem do filme, que parece partir da experiência pessoal e do grau de envolvimento dos realizadores Pedro Pinho e Luísa Homem com aquele contexto, aponta para estes dois cenários: um lugar em transformação que se deixa apreender na rede incontornável do capitalismo global, mas que tem “ilhas” de resistência. A escolha da montagem vai adensando os aspetos destas duas forças que agem em simultâneo.
8. De alguma forma seria mais difícil centrar essa observação numa ilha como o Sal ou a Boavista onde o turismo massificado está demasiado impregnado no quotidiano dos habitantes. São Vicente vive este processo mais recentemente, e tem-se conseguido proteger melhor. Mas é por pouco tempo. O filme é de 2014 e, dez anos depois, os inúmeros hotéis à beira da Praia da Laginha quase prestes a estrear, deixam-nos a sensação de dias contados para usufruir de uma praia ainda com população local em maioria, equação que mudará muito em breve e possivelmente não restará areia para os naturais da ilha, crioulos que naquela praia praticam rituais de quotidiano, banho, sol, passeio, corrida, convívio.
O dinheiro pode tudo e, quando se der conta, os cabo-verdianos serão, mais ou menos declaradamente, convidados a deixar de frequentar a sua praia, como já tem acontecido em tantos lugares litorâneos que vão sendo usurpados e privatizatizados.
9. É sabido que a ética dos filmes manifesta-se também na estética. Sendo um filme arriscado pela tónica circunscrita à linguagem visual (inquestionavelmente bela) e, por sua vez, militante na ausência de palavra e de discurso, dificilmente acedemos a uma maior complexidade teórica destas questões. Mas ficamos a pensar: Quem lucra afinal com este tipo de turismo?
Os verdadeiros tubarões do turismo e da construção dos grandes empreendimentos, os especuladores de terrenos, os investidores estrangeiros, o sócio caboverdiano que fará a mediação, etc. não estão presentes no filme. E é preciso referir que também o turista pode ser tanto elo mais fraco quanto o é o trabalhador caboverdiano. Ambos se adaptam e se aproveitam, oportunisticamente ou sem opção, da realidade à sua disposição. O turista da Europa Central ou latino que poupou dinheiro o ano inteiro tem todo o direito a consumir o pacote que lhe for acessível na agência turística e a desfrutar o sol tropical nas suas férias, ainda que colabore com a devastação de dinâmicas originais da ilha. (Não dá para suportar aqueles discursos snobe de “antigamente é que era bom” quando só uma pequena elite burguesa viajava.) O caboverdiano que trabalha em turismo, ainda que certamente explorado, também ficará contente pelo facto de ter uns biscates, e haver mais dinheiro a girar no seu raio de ação, sabendo porém que quem fatura substancialmente, quem enriquece a sério, nunca será o próprio nem os seus conterrâneos.
10. Como espectadores apercebemo-nos do tom que subsiste os filmes, se a atitude é de respeito, compassiva ou cínica, de arrogância ou de humildade (Barbash e Taylor). A relação entre o realizador e o objeto do filme tem obviamente consequências na forma de nos transmitir a matéria do filme. Nesse sentido, As Cidades e as Trocas é, obviamente, um filme mais empático com uns e mais caricatural com outros, e, como referido, de posicionamento manifesto. Ainda bem. Filmes não posicionados são raros e normalmente apresentam uma sopa morna onde não se distinguem os ingredientes.
O que sentimos faltar neste filme, para arriscar um posicionamento ainda mais ousado, é a implicação dos próprios realizadores num jogo de forças maiores e de auto-questionamento. Que espécie de turistas seremos nós? Nós, portugueses brancos, na altura jovens, que convivemos mais de perto com os caboverdianos, que já tivemos projetos de trabalho, amor e de mudança de vida naquelas ilhas? Como colaboramos ou resistimos a esses processos nos lugares de onde vimos? Como também alimentamos essa máquina predadora, até no meio cultural e especificamente no cinema? E porque usamos este lugar como laboratório de um processo em escala maior?
O jogo capitalista talvez não esteja ainda, neste filme, suficientemente desmascarado nas imagens soltas e belas que documentam algo em transformação, em processo de perda ou mesmo de extinção. Precisamos de mais elementos para desmontar os processos por detrás dessa perda para lá de constatá-la.
No entanto, podemos também ficar num lugar em que especulamos sobre tudo isto.
11. Retomando as ideias do livro do Calvino, As Cidades Invisíveis (1972). A circulação na cidade, a mobilidade e mutabilidade urbanas que a tornam um ser mutante, ainda que de pedra, os agentes no espaço urbano e o confronto entre rotina e mudança, entre uma economia sustentável e de grande escala estão inscritos no filme.
É um complexo território em disputa.
O plano final dos camelos a atravessar o deserto parece um presságio: o tal mundo de resquícios de felicidade da viagem de Marco Pólo que Calvino falava estará em vias de desaparecimento. Em que parte do deserto nos encontramos?
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