O ‘Nexo’ publica um trecho de ‘Memórias de Dorothée Duprat de Lasserre: Relato de uma prisioneira na Guerra do Paraguai’. Esse é o único depoimento escrito por uma mulher no conflito do século 19.
Passamos o dia seguinte em Ajos. Ali soube que muitas estrangeiras estavam também destinadas, foi então que conheci o motivo da ordem de destino de 2 de janeiro, feita em Ascurra.
No segundo dia foram preparadas seis carretas e nos despacharam em grupo para Carayaó, tratando de causar-nos um medo terrível pelo estuário que íamos cruzar. Tivemos uma agonia terrível em pensamento, pois nos víamos já enterradas, com carreta e tudo, num lodo hediondo. Mas não podíamos nos deixar abater,porfim chegamos em dois dias a tal estuário, que cruzamos voando.Tal fora o susto que havíamos tido antes que nos pareceu uma tolice, e rimos muito de nossos temores. Fomos chegando ao Tossatyrí, que atravessamos em canoa, ali veio o juiz de Carayaó buscar-nos para colocar-nos em casinhas perto do rio, aguardando que viessem nos buscar em carretas para conduzir-nos à capela, que distava duas léguas. Recomendou-nos aos donos da casa, que foram muito atentos, e no outro dia mandou seis boas carretas para buscar-nos. Chegamos a Carayaó, ele nos deu quarto, ofereceu-se a nós em tudo, serviu-nos como um cavalheiro. Seu nome é Nicolas Larrosa, a mim em particular me obsequiou por ter sido antigo amigo de meu irmão. Agradeci-lhe duplamente,porque já tinha sido muito desprezada por ser de família de traidores, e ele me obsequiava em lembrança de um deles. Ali estive como para morrer, muito enferma. No outro dia, saí desse povoado para Santa Ana, jurisdição de San Joaquín; chegamos sem tropeço. Lá já não havia mais que três carretas, as quais só podiam receber carga; tivemos que aguardar dez dias. Estando ali, a sr.a Gutierrez recebeu uma encomenda de M.me Lynch com uma carta que não quis me mostrar. Mais tarde, estando ela enferma, tive que revisar esses papéis e, vendo meu nome num deles, li a carta.Nela M.me Lynch dizia que ela fazia muito mal falando-lhe em suas cartas das sr.as Duprat e Lasserre; que sua intenção não era influir em nada sobre suas amizades,masque
não podia furtar-se a dizer-lhe o mal que fazia pronunciando nosso nome. “Quero crer”,dizia, “que essas senhoras ignoram a parte que seus esposos tiveram na conspiração, mas lhe direi as declarações dos mesmos criminosos. O sr. Duprat pai foi um dos mais ativos conspiradores, espião brasileiro em correspondência como barão de Villa Maria. Encontraram-se muitas cartas escritas por ele, cartas muito comprometedoras, mas S. Ex.a quis fechar os olhos sobre isso, deixou-o em liberdade. O sr. Lasserre, agente perigoso da conspiração,recebeu uma grande quantidade de dinheiro da aduana para manter vários conspiradores e mandou em seguida uma forte soma; por fim o sr. Aristide Duprat fora escolhido entre os conspiradores
para cravar o punhal assassino no coração da augusta pessoa de S. Ex.a .Já pode V. S.a figurar-se o mal que faz sendo estreitada com elas, e sem elas estaria agora ao lado de seu esposo.”
Quer dizer que a culpa pela detenção de Gutierrez era minha. Como já disse, ignorei isso por algum tempo, assim, aos dez dias seguimos viagem; depositaram-nos em outro lugar, chamado “a Escola”. Ali não havia quarto nem galpão; desci da carreta com febre, começou a chover, não houve onde nos resguardar.Quase morri por ter ficado tanto tempo molhada, mas eu queria viver a todo custo para voltar a ver meu Narciso.
Creio que, nas circunstâncias em que me encontrava, a esperança me salvou. Tivemos que passar nesse lugar aguardando carretas, então vimos uma casa vizinha; hospedamo-nos num galpão todo aberto, e ali vivemos um mês e seis dias. Os criados da sr.a Gutierrez se desgostaram, o meu estava com as pernas miseráveis de sarnas, de modo que nos últimos dias me determinei a fazer um esforço e sair para a rebusca; isto é, para buscar a vida. Montei um cavalo que meu pouco peso fazia bambolear e fui passando água e lama, caindo e levantando-me para ver se encontrava algo.Voltei com oito espigas de milho e três mandiocas. Veio por fim a carreta que nos levaria até a
capela;os caminhos eram horríveis. A subida da serra foi difícil para as carretas,mas chegamos sem tropeço. Chegamos a San Joaquín à meia-noite, o juiz recebeu-nos bem, deu-nos um bom quarto,ofereceu-nos descansar ali o quanto quiséssemos. Não aceitamos, desejosas de chegar a Yhú, pois nosso dinheiro terminava. No outro dia, seguimos até Yhú; gastamos dois dias em viagem, entramos na capela em 21 de março de 1869. Hospedaram-nos as sr.as de Rebandi e Susine. Dali nos apresentamos ao juiz,que nos recebeu muito bem,nos inscreveu como povoadoras e disse que podíamos nos deslocar sem passe até uma légua ao redor da capela. Disse ainda que buscássemos prontamente capoeiras ou que faria com que nos dessem terreno para semear; que ele nos daria todo tipo de sementes.
Retiramo-nos. No dia seguinte, vieram sargentas da região querendo nos obrigar a ir pessoalmente ao monte cortar paus para fazer cercas. Empreguei mil manhas para não ir, mas era uma contínua mortificação. Éramos ainda senhoras delicadas, sendo tratadas pior que negras por essa plebe que tinha ordem de fazer-nos sofrer. Fui queixar-me ao juiz, que me disse que não podia intervir nas ações da sargenta, pois já éramos povoadoras, sujeitas a fazer as obras públicas como os vizinhos.Foi ali que soube o conteúdo da carta que mencionei. Separei-me na hora da sr.a Gutierrez: vi que minha companhia lhe causaria prejuízo e esperei que M.me Lynch a atendesse, vendo que já
não estávamos juntas. Fui viver numa casa distante da capela cerca de uma légua. Sob certas condições, davam-me de comer. Meu criado me abandonara, pois não podia comer apenas feijão sem sal. Como eu não tinha outro alimento, não pude oferecer algo melhor. Ele então buscou sua vida onde quis, e nós fomos para essa casa.
Memórias de Dorothée Duprat de Lasserre: relato de uma prisioneira na Guerra do Paraguai (1870)
Dorothée Duprat de Lasserre
Trad. Fabio Weintraub
Chão Editora
168 páginas
Lançamento em 28 de outubro
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