Da pintura cabo-verdiana aos reparos da dominação colonial, por José Carlos Venâncio – Portugal Digital

A fotografia que ora publico e que serve de motivo para a presente crónica, foi tirada há uns anos, com uma máquina digital bridge Olympus da série SP-720-UZ de 14MP, com uma abertura de f/3,4 e com uma velocidade do obturador de 1/250. Não obstante as limitações técnicas, penso ter conseguido o propósito da sua realização, espelhar um quotidiano que, sendo cabo-verdiano, mormente o da zona portuária da cidade do Mindelo na ilha de S. Vicente, se assemelhava muito ao vivenciado nas Caraíbas. No primeiro plano ressalta o edifício da firma Figueira & Cª. Lda. que albergou, no primeiro andar, o atelier de pintura de Manuel Figueira (1938-2023) e de sua mulher, de origem portuguesa, Luísa Queirós ( – 2017).

Foi nesse atelier que tive os primeiros contactos com a obra destes artistas nos idos de 90 do século passado, de que resultaram várias publicações e, sobretudo, uma profunda empatia com a sua obra, para a qual igualmente contribuiu a amizade que, entretanto, foi surgindo e crescendo. Estabelecem-se ambos em Cabo Verde após a Revolução dos Cravos [25 de Abril de 1974], vindo a criar, juntamente com a pintora Bela Duarte (-2023), a Cooperativa Resistência, com quem, mais tarde, Luísa Queirós ainda fundou a galeria Azul+Azul=Verde. Manuel Figueira foi também Diretor do Centro Nacional de Artesanato, sedeado na mesma cidade, transformado hoje no Centro Nacional de Arte, Artesanato e Design (CNAD) que, em homenagem à sua obra, mantém uma galeria com o seu nome.

Manuel Figueira, Bela Duarte e Luísa Queirós foram os grandes impulsionadores da pintura cabo-verdiana moderna e/ou contemporânea que, como aconteceu na esmagadora maioria dos países africanos continentais, apenas surgiu ou ganhou fôlego após as respetivas independências.

Diferentemente, porém, do que têm sido as linhas estéticas dominantes na arte contemporânea da África continental, contextualizadas com as experiências estéticas locais e tradicionais, de que a obra de Malangatana será um dos expoentes máximos, os artistas plásticos cabo-verdianos, sob perigo de inautenticidade, não poderiam, e não podem, deixar de refletir, na sua obra, temáticas, formas e sentidos de vida de uma sociedade híbrida que, na sua natureza, incorpora a herança ocidental.

É, sobretudo, uma arte “mestiça” que, enquanto tal, seria, em princípio, um fator de diferenciação e valorização, comparável às experiências estéticas do mundo caribenho, para cujo universo referencial Onésimo Silveira, um nome maior da cultura cabo-verdiana, procurou, a dada altura, chamar a atenção de todos quantos se dedicam ao estudo da aventura humana no arquipélago.

Não é esse, porém, o entendimento que críticos literários, artistas e demais atores do mundo da arte português têm dessa experiência insular. Pouca ou nenhuma tem sido a recetividade dos artistas plásticos cabo-verdianos junto do mundo artístico português, para o qual, na demanda de reconhecimento internacional, primeiramente se viram na expetativa de uma recetividade supostamente facilitada pela proximidade cultural. Expetativas goradas! O que seria, em princípio, uma vantagem, a tal proximidade cultural, tem-se revelado como um obstáculo à sua aceitação, na medida em que entram em concorrência direta com os artistas e as dinâmicas de mercado locais.


Manuel Figueira

Biúca mostra-me sê imbigue seis vez, 2003

Técnica: Óleo s/encáustica (cera de abelha s/ serapilheira


Dessa rejeição ou não aceitação que, por vezes, se faz sentir de forma muito subtil (invocando, por exemplo, razões técnicas), resulta uma dupla discriminação dos artistas plásticos cabo-verdianos. E por detrás de tal atitude está uma mentalidade neocolonial (evito propositadamente o termo pós-colonial neste propósito), racista, de uma suposta supremacia cultural, que tarda em desaparecer. Talvez a discussão espoletada pelo Presidente Marcelo Rebelo de Sousa sobre os hipotéticos reparos devidos às colónias devesse começar por aqui, pelo que é subtil, mas que magoa… e que, não sendo compaginável com compensações financeiras histórica e sociologicamente despropositadas e difíceis de implementar com justiça, é-o com uma autocrítica que, ao ser exercitada no e para o presente, servirá, certamente, para nos desanuviar o futuro.

José Carlos Venâncio é professor catedrático aposentado da Universidade da Beira Interior e investigador-colaborador do CECS – Centro de Estudos de Comunicação e Sociedade.

 

Crédito: Link de origem

- Advertisement -

Comentários estão fechados.