Atividade cultural em Tomar “ajudou a suster a cidade” – diretor artístico do Fatias de Cá

‘Viriato’ estará no próximo sábado, dia 30 de setembro, na arena da praça de touros de Tomar. Fomos falar com Carlos Jorge Anjos Carvalheiro, cofundador do Fatias de Cá e nascido naquela cidade do Médio Tejo em novembro de 1955, e perceber o que implicou 44 anos de luta pelo teatro.

Seguiu um sonho que cedo o começou a emocionar: o teatro. Encenador e fundador da companhia de teatro Fatias de Cá, é atualmente diretor artístico da companhia, fundada em 1979.

Não lhe chamaria propriamente um sonho… às vezes pergunto-me se não será uma maldição. Mas realmente começou muito cedo, logo no jardim escola, percebi que era o que mais me fascinava. Sou um dos fundadores, o Fatias de Cá começa com um grupo de pessoas e a perspetiva não era fazer uma companhia de teatro mas, simplesmente, numa cidade muito feudal e muito fechada culturalmente, como era Tomar nessa altura, ativar uma atividade cultural. Juntou-se meia dúzia de pessoas – costumamos dizer meia dúzia de seis ou sete –, umas mais ligadas à música, outras à literatura e outras ao teatro -, e inventámos uma espécie de sarau cultural na Nabantina, uma coletividade que ainda existe, para lembrar a figura muito querida, em Tomar, de Nini Ferreira.

Fez-se um trabalho à sua volta e das velhas revistas de Tomar, com muito sucesso e, como resultado, pensou-se desenvolver uma atividade mais regular na coletividade e daí surgiu um coro, que é o atual Canto Firme, o teatro, que é o Fatias de Cá, e também se fez um jornal e ajudou-se nos jogos populares. Portanto, a intenção era animar ou, de alguma maneira, mandar uma pedra para o charco a ver se isto abanava um bocado, Tomar era muito conservador. O teatro segue o seu caminho mais específico e em 1980 acabo por assumir a direção artística e cá andamos.

Maldição porquê?

Porque ficamos agarrados ao teatro e mesmo que queiramos fazer outra coisa não somos capazes. Ou melhor, estamos sempre focados no teatro, no ato de, aquilo que chamamos, contar aos outros aquilo que achamos que é importante.

Portanto, criaram o grupo de teatro em 1979. O que o motivou?

Quando fui estudar para Coimbra – na altura era preciso tirar um curso para se ter uma coisa decorativa para a família ver, fiz engenharia eletrotécnica – estive sempre ligado ao teatro, que era o Teatro das Aldeias. É preciso dizer que faço o curso na transição do 25 de Abril, e foi uma euforia, as pessoas andavam muito entusiasmadas com a atividade cultural. Lá fui fazendo o curso e paralelamente teatro nas aldeias. E como em terra de cegos quem tem um olho é rei, tinha de ensaiar e criar mecanismos de encenação. Nos diversos grupos tive muita atividade nessa altura e a minha intenção era seguir teatro, mas precisava de acabar o curso, pareceu-me que era normal. Entretanto caso, depois já não sabia muito bem o que fazer da vida, depois descaso e a intenção era ir para Coimbra ou algures para o estrangeiro continuar no teatro, que era aquilo que gostava. Durante o tempo de casamento estudei teatro e entretanto começo a dar aulas no ensino regular, primeiro aulas de desenho e mais tarde de matemática.

À medida que fui fazendo o curso no Conservatório surge o Fatias de Cá e tudo se conjuga para saber o que ia fazer na vida, sendo certo que estava convicto que eram coisas ligadas ao teatro. Faço um trajeto por Lisboa nos grupos independentes, nomeadamente no Teatro do Mundo, uma cisão da Comuna, que levou Manuel de Freitas, José Mário Branco e mais alguns atores da Comuna. Participei nisso e convivi durante cerca de um ano nesse registo do teatro profissional em Lisboa. Percebi que também não era o meu caminho. Entre a opção de ir para o estrangeiro ou retornar a Tomar e começar tudo do princípio, acabei por perceber que no teatro a língua é muito importante e se não dominamos a língua natal não temos tanta facilidade. Acabou por ser Tomar o sítio onde fizemos o centro de produção. A partir daí é que se alargou a atividade a outros concelhos e neste momento o Fatias de Cá tem centros de produção entre Lisboa e Coimbra, e vamos desenvolvendo atividade de acordo com a disponibilidade que as pessoas têm por causa da geografia.

Mas implementou núcleos em Vila Nova da Barquinha, Coimbra, Ourém, Lisboa e Torres Novas – assumindo-os como centros de produção teatral. Atualmente tem centros de produção em Lisboa, Coimbra, Tomar, Torres Novas e Almourol (Barquinha), não é?

Sim. São entidades, com número de contribuinte, como associações mas todas se chamam Fatias de Cá.

Começou a representar no liceu, passou pelo teatro universitário, fez engenharia, acabou professor. Que disciplina ensina?

Sim, no liceu foi mais marcante. Mas, como digo, desde o jardim escola que sempre que podia representava. Atualmente ensino teatro. Foi uma bulha que fizemos: incluir áreas artísticas no ensino curricular. Há cerca de 30 anos – não foi imediato – mas com as atividades, com os clubes, etc, foi-se metendo teatro. Os miúdos gostavam e percebeu-se que a disciplina artística poderia ter utilidade além das artes plásticas e da música e hoje já é vulgar que as escolas (não todas) tenham teatro e outras atividades artísticas. Mas como ainda não abriram concursos para professores de teatro, as escolas recorrem aos recursos que têm; ou são especialistas que vão à escola durante um ano ou assim, ou então pessoas com formação ou gosto.

É o seu caso.

Sim, como tenho formação colocaram-me, coisa que a mim não me ralou nada.

Ensinar é diferente de representar mas não deixa de ser teatro. Como é que os alunos reagem?

Exatamente. É meio por meio. Como se tornou uma disciplina há miúdos que gostam, outros que não gostam, outros que têm vergonha, outros que são desavergonhados. Ou seja, quando se trabalha com uma turma como se fosse uma disciplina, uma hora ou duas por semana, não é muito fácil conseguir chegar àquilo que o teatro tem para fazer, que é consumar com o público, apresentar-se. Normalmente essas coisas fazem-se melhor quando as pessoas estão ali por vontade. Como nas aulas têm notas, às vezes não ajuda muito a conseguir-se esse ajuntamento de vontade para fazer um espetáculo. De qualquer forma, não há dúvida nenhuma, do ponto de vista da comunicação, o teatro permite às pessoas expressarem-se, melhorarem a sua dicção, melhorarem a sua presença perante os outros. Isso acaba por ser, mais ou menos, percebido pelos miúdos que mesmo que não gostem muito, não são grandes artistas, podem expor-se melhor à frente dos outros. Nota-se muito a diferença nos alunos que já participaram em atividades teatrais, quando têm de fazer trabalhos nas aulas, para os colegas, nota-se mais à vontade e maior segurança. Talvez eventualmente ganhem um bocado de gosto pelo teatro no sentido de ir ver.

Mas o que sempre quis foi o teatro. Que paixão foi (ou é) essa? O que sente na representação? Sendo que o Fatias de Cá tem consciência, e assume, que o teatro é uma atividade elitista, ou seja, para um número reduzido da população.

Quando se refere elite limita-se a ser aquele grupo de pessoas que se dispõe a estar concentrado durante uma hora ou duas, sendo que hoje em dia cada vez mais entretêm-se. É difícil estarem concentrados durante um período de tempo maior, por isso chamamos uma elite, nesse sentido. Na verdade o ato da representação é contar uma história, e a história passa-se num determinado sítio e numa determinada época. É convencer as pessoas a mudarem de sítio e a mudarem de época para acompanharem melhor a história. Se o cenário e as roupas forem mais ou menos adequadas, as pessoas deixam-se levar e penetram na história. Em teatro tem a vantagem de estarmos a ver os olhos das pessoas e elas veem os nossos olhos. Cria uma relação mais empática, mais direta. Tem o defeito de obrigar a estar ali… bem, mas as pessoas também podem distrair-se ou até adormecer… já fui ver teatro e deu-me o sono.

Mas o ato de contar uma história tem sempre a ver com o gosto que temos em ser apreciados – porque toda a gente gosta de ser apreciada e se as pessoas lá foram é porque estão dispostas a apreciar – e em contrapartida é as pessoas ficarem agradadas, divertidas ou emocionadas com a história que se está a contar, não tanto com o ator em si mas com aquela história, que valia a pena ser contada. Se for bem feito, melhor! Se não correr tão bem, é mais importante que seja uma boa história do que os atores sejam bons.

Carlos Carvalheiro diretor artístico do Fatias de Cá. Créditos. José Paulo Marques

Então para um bom espetáculo basta ter bons textos? Ou seja, o que lhe interessa em particular: o cenário, o talento do ator ou o virtuosismo texto?

O espaço. É a primeira coisa, senão não há o resto. Onde é que se faz? No teatro, o palco é na prática uma caixa e mete-se lá um cenário e o público vê como se fosse uma quarta parede de uma casa que foi abaixo. Foi uma das coisas, no teatro, com quais me pareceu ser necessário romper. Fazemos as peças já com um cenário que seja adequado à nossa história, à nossa representação. Há sítios onde não vale a pena tentar fazer teatro, como seja numa festa de aldeia… numa festa de aldeia há bailarico!

Aquilo que o teatro precisa é que as pessoas estejam concentradas e estejam mais do que concentradas e não sejam perturbadas por pessoas que não fazem parte do teatro. Ou seja, a relação entre público e o ator tem de ser mais ou menos fechada durante aquelas duas horas e não pode ter intervenientes exteriores, o que implicaria algo fechado, diferente da animação teatral que às vezes vemos nas ruas, umas passagens, que também é muito interessante mas não é bem a mesma coisa. Se tivermos um sítio conveniente para isso – tivemos o Convento de Cristo que usámos muito enquanto a tutela foi amável, é um sítio bestial -, se tivermos o espaço, temos de descobrir qual é a história que lá cabe melhor.

Nessa sequência, o encenador pode usar o feitio ou até os defeitos dos atores para a personagem, adaptar o feitio do ator à personagem e o público aceita como algo natural, mesmo não sendo muito bem representado, por exemplo, por inexperiência ou nervosismo. É só uma questão de habilidade pôr as pessoas a representar. Claro que se tivermos atores mais experientes, e à medida que se repete o espetáculo, que aliás é uma coisa que fazemos muito, repetir o espetáculo durante muito tempo.

Portanto essa é a razão que leva o Fatias de Cá a procurar grandes espaços cénicos para os seus espetáculos?

Exatamente! Acaba por ser uma vantagem. Espaços cénicos que tenham uma memória, o público vê e sente que mudou de sítio.

Qual a razão de o lema do Fatias de Cá ser ‘Não resistir a uma ideia nova, nem a um vinho velho’?

Os lemas têm a vantagem de se explicar por si próprios. Corresponde exatamente àquilo que lá está escrito.

Esta frase também está ligada à peça ‘Viriato’, baseado no livro ‘A voz dos Deuses’, de João de Aguiar, o espetáculo levado a cena dia 30 de setembro, na praça de touros de Tomar… ou estava, tendo em conta que contrariamente ao cenário do Tejo e do Castelo de Almourol, a peça incluía jantar, o que não acontece agora. Como vai ser em Tomar?

A peça foi apresentada pela primeira vez em 1999, já tem 25 anos. Começou por ser pensada para Conímbriga mas foi estreada em Almourol, tipo ensaio geral. Correu muito bem! Em Conímbriga estivemos três ou quatro anos e voltámos a Almourol apesar de ser num cenário com alguns 15 séculos a seguir a Viriato, o cenário de pedras passava muito bem porque parecia um castro. E as pessoas gostavam muito de Almourol. Mas tem uma plateia – e mesmo assim foi organizada na sequência dos espetáculos ‘Viriato’ – onde cabem 300 ou 400 pessoas e a possibilidade de usar a praça de touros tem dupla relação: a primeira é que cabem três mil pessoas, o que significa que mesmo quando se vendem bilhetes relativamente baratos a capacidade de receita do projeto paga as despesas e permite que possamos investir noutras coisas.

E subsídios públicos?

O Fatias de Cá não recebe subsídios de ninguém, faz isto à custa de bilheteira, o que dá para pagar as despesas, mesmo com atores profissionais que possam ser pagos. Se dá prejuízo divide-se os prejuízos e lá vamos andando. Acabam por ser mecenas ou pelo menos investidores culturais nesse sentido, fazem isto porque gostam mesmo de fazer. Em segundo lugar, porque está a haver um preconceito, dessas novas atitudes politicamente corretas, de tratar a praça de touros como um sítio de martírio ou de morte, por causa da atividade da tourada. Independentemente das opiniões sobre a tourada, o que não há dúvida é que a praça é um espaço de espetáculo. Não temos nenhum anfiteatro tão bom entre Lisboa e Coimbra e não nos podemos dar ao luxo de desprezar um sítio tão interessante para juntar duas ou três mil pessoas.

Em vez de andar a construir um Pavilhão Atlântico, em pequenino, aqui na zona, está feito! É certo que não está coberto, é uma desvantagem, mas o Campo Pequeno tinha o mesmo problema e transformaram-no num espaço coberto. Apesar de ter um cenário que, quando está cheio não é cenário, são pessoas, ao mesmo tempo o foco passou a ser a arena e pode ter uma força, de tanta gente estar ali a vibrar, que dá um espetáculo extraordinário. Tudo menos o que fizeram em Cascais: destruir a praça de touros porque não gostam de touradas. Em Tomar, a arena vai ser o palco. Tem uma espécie de pequeno palco para algumas coisas mas é na arena que se passa a ação; entram os cavalos e há lutas, etc. Este espetáculo não terá jantar – que em Almourol era a boda de casamento de Viriato-, não conseguimos resolver esse problema para três mil pessoas, mas também é verdade que fazemos o espetáculo depois de jantar e fica mais barato o bilhete.

A peça tem então a duração de duas horas, com intervalo, a adaptação foi feita por Carlos Carvalheiro e por Filomena Oliveira. Nela participam cerca de 100 atores e, como há cenas com cargas de cavalaria, portanto também ‘participam’ cavalos?

Serão cerca de 60 ou 70 atores e com certeza que participam cavalos.

O que é que gosta mais de levar a cena: comédia, tragédia ou dramas palacianos?

Gosto de levar a cena histórias que valham a pena serem contadas. E há sempre histórias boas em quaisquer dos géneros. A comédia é o género mais difícil. Exige mesmo bons atores, não há grandes margens: ou se tem graça ou não se tem graça. Mas isso não impede que, sendo a história mesmo interessante, não a façamos. No programa de espetáculos que estão em cena este ano, dramas palacianos quando muito ‘Sonho de uma Noite de Verão’ e, eventualmente, ‘Inês de Portugal’. É preciso saber se a história vale a pena ser contada, se valer, temos de a contar. Por isso é mais fácil ir buscá-la a romances do que a peças de teatro. Na prática, das 11, apenas quatro foram escritas para teatro.

Só leva a cena textos com os quais estabelece uma relação?

Absolutamente. Essa é a condição. Foi tão interessante que temos de o fazer.

Foi por isso que em 2005 o Fatias de Cá levou a cena a peça ‘Equador passa em S. Tomé e Príncipe’. Deu algumas dores de cabeça quando Miguel Sousa Tavares decidiu colocar o caso nas mãos dos tribunais acusando a companhia de plágio. Entretanto, chegaram a acordo e o grupo não voltou a apresentar a peça. Passados estes anos, como recorda esse episódio?

Quando o grupo quis fazer o Equador escrevi a Miguel Sousa Tavares para autorizar a adaptação. Ele enviou um bilhete a dizer que não percebia nada de teatro mas que autorizava a adaptação e quando começamos a preparação para apresentar o espetáculo no Parque Ambiental de Santa Margarida [Constância], Sousa Tavares diz não autorizar porque estavam a preparar uma série na SIC. E pensámos em inventar outra história, passada igualmente em São Tomé naquela época do esclavagismo, uma peça diferente. Sousa Tavares apresentou uma providência cautelar. Hoje, se voltasse atrás chamava à peça simplesmente ‘S. Tomé e Príncipe’.

Mete-nos em tribunal e tentámos demonstrar que a peça não era um plágio, a juíza sugeriu um entendimento. Sousa Tavares propôs, se não voltássemos a fazer a peça, retirar as queixas e pagar as custas do processo e o nosso advogado, que trabalhava pro bono, como se pode imaginar, depois de conversar connosco, aceitou o acordo. Mais tarde Sousa Tavares vem no Expresso dizer que tinha ganho o processo e não tive outro remédio senão publicar o bilhete que escreveu, as versões, tudo. Muita gente achou que Sousa Tavares estava a ter uma atitude de quero, posso e mando e que não tinha razão porque não era um plágio. E ficou assim. Nunca estivemos juntos, nunca tivemos nenhuma conversa mas não há dúvida que gostava muito de o ler e continuo a gostar. Continuo a lê-lo no Expresso com muito gosto.

Já oViriato’ é um épico, apresentado numa praça de touros. O que é que o público pode esperar?

Uma noite bestial. Muita ação. Há momentos mais dinâmicos na primeira parte, depois há o casamento de Viriato, uma espécie de cerimónia ritual, quando se apagam as luzes a peça ganha um ar mais negro – toda a gente sabe que vai ser morto – e depois tem a ver com esperança; temos de ir para outro lado e continuar. A mensagem que queremos passar prende-se com valores, mais do que com a questão do herói. Uma pessoa com valores não tem outro remédio. Quando somos enganados de uma forma vil por alguém, não temos outro remédio senão encontrar uma forma de lutar contra esse rompimento de lealdade do outro.

Viriato não aceitava atitudes que por dinheiro dispunham a cortar a mão às pessoas ou a escravizar, prender. Não tinha outra coisa a fazer! Como era esperto não lhe correu logo mal, mas acabou por ser assassinado à traição. O exemplo ficou! Sabemos mais sobre Viriato porque em Roma, os parlamentares do senado, a propósito da muita corrupção que existia, citavam o exemplo deste bárbaro como homem com valores contrariamente a muitos romanos que não os tinham. Penso que mais interessante de Viriato, não é o facto de lutar nem ser morto, são os valores que defendeu e não abdicou deles.

Até ao momento que peça mais o marcou, que peça ainda não conseguiu encenar e que tem como objetivo?

Há uma peça que me marcou muito, ainda não consegui encenar mas não posso dizer o nome porque estamos a tentar levar a cena, no futuro. Outra posso contar: tem a ver com a tentativa de recontar a história de Tomar, dos heróis, dos templários. Há algumas que nos marcaram, foram muito importantes para o grupo. Estamos quase com 50 anos de grupo com momentos mais altos e outros mais baixos, por isso não podemos deixar de parte ‘T de Lempicka’ e ‘O Nome da Rosa’. Esta última esteve dez anos em cena, no Convento de Cristo todos os domingos, e foi uma peça muito marcante.

Penso que é sabido que o autor conta a história numa abadia que não localiza e poderia ser nesta, batia tudo certinho. Até inventávamos alguns pormenores que só havia aqui e nesse sentido as pessoas deixavam-se entrar na história. Sentíamos a ligação entre quem está a representar e quem está a assistir. Para contarmos a história num dia havia refeição, as pessoas iam comer e ao fim da sopa um morto, saía tudo depois voltava tudo para o refeitório para continuar a refeição. A refeição era partida, significa que bebiam umas cinco ou seis vezes, tudo era mais bonito, mais alegre, mais uno. No final há o incêndio, a destruição total, era só para os aplausos, e a sensação que tínhamos – a peça durava cerca de 4 horas – é que as pessoas tinham mesmo gostado, como se tivessem viajado no tempo e no espaço. Essa foi aquela peça que mais marcou o público, a nós marcaram várias. Há uma meia dúzia que toda a gente referiria como peças muito importantes.

Fatias de Cá. Créditos. José Paulo Marques

Portanto, o grupo foi criado em 1979, legalizou-se em 1982 como associação cultural, mas só em 1998 é assumido pelo Ministério da Cultura como entidade com atividade teatral de âmbito profissional…

Fomos apoiados pelo Ministério da Cultura uma vez, para ‘T de Lempicka’, um pequeno apoio. Com esse apoio montámos outro espetáculo para a Expo 98 em parceria com japoneses e chineses. E com o dinheiro que ganhámos na Expo – que era mais ou menos o mesmo do apoio – montámos parte do ‘T de Lempicka’ no Convento. Nunca mais recebemos subsídios e não percebemos porquê. Já desistimos de concorrer porque todos os anos ficávamos rés-vés Campo de Ourique, nunca passávamos da cepa torta e por isso definimos outra estratégia. Nunca tivemos empregados a não ser quando precisámos de uma máquina de catering e teve de ser uma entidade com funcionários. Depois percebemos que era mais barato comprar serviço de catering, hoje só utilizamos serviço externo. Mas os atores que entram nisto sabem que se houver possibilidade de repartir, se o projeto tiver lucro, reparte-se de acordo com as responsabilidades, se houver prejuízo também se reparte de acordo com as responsabilidades. As pessoas sentem este trabalho como uma atividade de investimento cultural. Fazem teatro porque querem.

Pelo meio esteve alguns anos (de 82 a 86) sem teto para ensaiar. Não pensou em desistir?

Sim, quando a Nabantina teve uma nova direção. Na prática a Nabantina era o bar da Legião Portuguesa, não que fossem fascistas – também haviam de ser – mas porque a Legião Portuguesa era em frente à Nabantina, então os legionários juntavam-se mais na Nabantina que tinha um cunho muito passadista. De repente, aparecer malta nova em 1979, eram os comunistas, andava tudo mais ou menos em pânico. Claro que não ligávamos nenhuma e lá fomos andando, mas propôs-se uma lista que queria mesmo limpar a Nabantina destas atividades culturais, achavam que fazia mal à saúde. Foi nessa altura que criaram problemas ao coro, que já existia. O coro saiu e nós por solidariedade também saímos e ainda pusemos a hipótese de fazer uma associação nova mas como não havia espaço, cada uma desenvencilhou-se.

Na altura o teatro estava muito mal visto; as pessoas ou eram maricas, ou drogados, ou putas, ou comunistas… demorou um bocado até a opinião pública mudar. Nesse período houve muita dificuldade e estivemos quase a desistir, mas o momento da rotura chegou em 1996, passados 10 anos, quando já tínhamos uma série de experiências. Quando estava a correr mal, surgiu o Fundo Social Europeu e os cursos profissionais. Não havia nada na área artística, nem escolas. Candidatámo-nos e conseguimos, por dois anos, curso para animadores culturais. Era pago, uma verba volumosa, e o Fatias de Cá conseguiu encaixar dinheiro e fazer produções teatrais. Com isso conseguimos participar em vários festivais internacionais, fizemos várias peças importantes. Depois acabou porque com Cavaco Silva vieram restrição a áreas culturais, voltámos a ficar entregues a nós próprios. Já não havia tanta má vontade em relação ao teatro mas não havia tanto público como isso, nem tínhamos espaço.

Tivemos uma pequena loja na rua paralela à estação do comboio em Tomar, um pequeno bar, uma espécie de café-concerto, onde fazíamos peças, mas os custos eram mais elevados que as receitas e suportávamos as despesas até ficar sem dinheiro para pagar a renda da casa, ficámos outra vez sem nada. O que nos valeu foi o Convento de Cristo, na altura o diretor achou muito bem que fossemos para lá. Se a peça ‘Ligações Perigosas’ falhasse, acabava-se mas eu disse que se falhasse fazia um monólogo sobre o Ferreira de Castro. Nessa altura o Fatias de Cá era constituído por seis ou sete pessoas, quase só mulheres, sempre foram o grande suporte do Fatias de Cá, a alma vital, que conseguiram agregar e nunca desistiam, os homens sempre foram mais flutuantes. A peça ‘Ligações Perigosas’ foi um sucesso extraordinário, e na sequência aparece a Expo 98, e o ‘T de Lempicka’. Até agora foi sempre a crescer em espaço, alargando, e começámos a ter mais cuidado com os custos das produções e tornar mais sustentável a atividade. Neste momento não temos dívidas, aquilo que gastamos conseguimos pagar, mas na verdade pagamos do nosso bolso muitas coisas.

Finalmente recebeu o estatuto de utilidade pública em 2001. Parece ter sido um caminho difícil?

Sim, foi concedido na Câmara Municipal. Se o caminho foi difícil… não sei, talvez. Não há caminhos fáceis no teatro. As coisas importante dão chatice e trabalho.

Como vê o panorama cultural e teatral na região e no país?

O teatro está a ganhar públicos, como se houvesse condições para acreditar que está a entrar um bocadinho na moda. Não é mérito do teatro mas mérito das pessoas que passam tanto tempo agarradas à televisão que às vezes começam a ter necessidade de vivências, com atividades culturais ao vivo e a cores.

Normalmente o que está à disposição são cenas de animação, teatro de rua, festas, festivais que são engraçadas mas, se muito repetidas, acabam por ser mais do mesmo. Pode acontecer que as pessoas tenham vontade de ir a um sítio diferente. Com o Fatias de Cá isso acontece, as pessoas vão porque acham que a história que vão ouvir as pode enriquecer e levar a ver um ponto de vista que não tinham visto.

Não digo que vão aprender mas vão pelo menos conviver com uma realidade excecional, que é a da história – se fosse uma coisa banal não valia a pena estar a contar.

O que distingue o Fatias de Cá das outras companhias de teatro?

Para já o espaço cénico, a comida também é importante – no ‘Viriato’, dia 30, não há jantar porque três mil pessoas não é prático – para garantir que as pessoas estão mais tempo presas ao espaço e ao tempo que a gente as convoca porque, como a refeição costuma ser no meio, as pessoas acabam por ficar mais tempo, não se distraem com a vida normal, por exemplo com o telemóvel, ficam ali fechadas naquele universo mais meia hora ou três quartos de hora. Das 67 peças que fizemos até agora, metade poderia ser recuperada que ainda tinha utilidade. Porque a histórica continua a valer a pena ser contada e porque ocupámos poucos espetadores. Não são sempre os mesmos que vão ver a peça e fazemos as peças em vários locais do País.

Mas o mais importante é ter o espaço para fazer teatro. Por exemplo, em Coimbra aconteceu o oposto do que é costume, todos os espaços bons: o Mosteiro de Santa Clara, o Observatório Astronómico de Coimbra – para ‘A Fórmula de Deus’ -, o Museu Machado de Castro – para ‘A Flauta Mágica’ – o Seminário de Coimbra – para o ‘Diálogo das Compensadas’ – e está a criar-se a possibilidade do Mosteiro de Celas, que também querem abrir para ‘A Missão’. Cinco espetáculos diferentes, cinco produções totalmente diferentes.

Em Lisboa representamos à quinta-feira, porque está a ser cada vez mais difícil encontrar espaços para representar. Em Tomar durante anos não houve. No Convento, desde que a tutela começou a ser… não digo anti-teatro, mas a achar que não dava os lucros que queriam, faziam mais dinheiro de outra forma – penso que tem a ver com uma política economicista -, não fizemos praticamente teatro em Tomar. A Mata [dos Sete Montes] também é sempre umas complicações com o ICNF. Entretanto, surgiu a possibilidade com a Santa Casa da Misericórdia de fazer teatro na praça de touros.

Numa altura em que muitas vozes consideram que a Cultura continua a ser mal tratada – apontando para a percentagem atribuída à Cultura no orçamento de estado -, que importância tem para si todo este trabalho cultural? O que tem aprendido?

Não tenho a certeza se a Cultura está a ser maltratada, mas se tivesse de concordar diria que nunca foi bem tratada, não é agora que está a ser maltratada. O mítico 1% para a Cultura nunca foi atingido em país nenhum do mundo a não ser em França. Nunca é atribuído à Cultura um valor importante, mas não é porque as companhias são subsidiadas que fazem um bom trabalho. Acho que colocar a questão dos apoios não é uma verdade absoluta, se houvesse mais apoios não tenho a certeza que melhorasse. Às vezes até me parece que havendo mais dificuldades a Cultura anda mais refilona, capaz de ser mais interveniente, tem mais sentido quando faz. Por isso, não tenho a certeza. Acho que há muito compadrio, muito clientelismo.

Não acompanho totalmente a noção de que uma coisa tem a ver com a outra, mas aceito que haja essa opinião. Quanto ao ter aprendido se a premissa é contarmos histórias, por teatro ou por cinema, que valham a pena ser contadas, aquilo que temos mesmo de aprender é a contá-las cada vez melhor. E como sabemos que a estamos a contar melhor? Pela opinião pública. No final distribuímos um inquérito para o público opinar e as pessoas avaliam. Em geral, são mais simpáticas, avaliam sempre com notas acima.

Nenhum espetáculo dos que temos em cena foi avaliado abaixo de bom. É isso que temos de aprender; até que ponto o público gosta das histórias que contamos. Em Lisboa, o ‘Sim, Senhor Primeiro Ministro’ que julgávamos ser um sucesso bestial, nunca esgota. E outras histórias que achamos que toda a gente já viu, como ‘A Flauta Mágica’… o que leva as pessoas a escolher este e não aquele? Não sabemos!

O que nos pode dizer sobre estes 44 anos de luta pelo teatro?

Falando de Tomar… era esta a cidade que queríamos. Não sabemos o que vai acontecer com o Fatias de Cá… possivelmente vai morrer porque tudo o que nasce morre, mas aquilo que ninguém nos tira é a possibilidade do grupo ter conseguido fazer o que quer, quando quer e como quer. Cada vez há menos limitações, ou seja, cada vez conseguimos mais facilmente fazer isso. Claro que, como dependemos do espaço, dependemos muito das tutelas.

Em 2018, a Câmara de Tomar quis prestar-lhe homenagem pelo seu empenho na Cultura e na cidade. O Carlos recusou a honra. Disse que os executivos trataram o Fatias de Cá com “uma atitude a raiar o ostracismo”. Desde então nota uma maior aproximação entre ambas as instituições ou continua a não existir o apoio que devia haver?

A Câmara de Tomar trata o Fatias de Cá, falando de apoio, como trata os ranchos folclóricos. Se falarmos em números, o subsídio que a Câmara de Tomar dá ao Fatias de Cá poderá andar à volta de dois mil euros por ano e qualquer associação de Tomar tem facilidade em conseguir apoios de 30, 40, 50 ou 60 mil euros, mesmo atividades como um festival são muito apoiadas. Imagino que esse apoio não é para estragarem mas para pagar salários a técnicos e aos profissionais que contratarem para a realização das suas atividades.

Como nós não temos vínculos laborais com ninguém, não criamos emprego, ou seja, na verdade somos maus colegas, andamos a fazer coisas à borla. Nesse sentido não temos uma relação de andar na Câmara a pedir dinheiro, mas isso não significa que não haja uma colaboração interessante entre instituições, ninguém está zangado com ninguém. O atual presidente da Câmara, antes de o ser há um mês, era vereador da Educação e queria fazer uma atividade de receção aos professores e combinámos apresentar a peça ‘Inês Pereira’ para os professores que quisessem ver e acabou por funcionar bem.

Coisa que não tem sido tão ágil, aquilo que seria mais normal, com a vereadora da Cultura, que tem feito a estratégia cultural que entende mais adequada. Não achamos nem bem nem mal, foi eleita faz o que entende que deve fazer, se precisar da nossa colaboração para alguma coisa estou convicto que dirá o que quer. Nós também, mas a única coisa que precisaríamos era de um espaço que é aquilo que não têm.

Quando disse que Tomar é “a cidade que queríamos”, era isso que esperava, um espaço?

Não necessariamente porque não temos essa noção de propriedade, como uma pessoa que compra uma casa, julga que é dona da casa e na verdade a casa é que é dona dela, porque têm de andar todos os meses a pagar ao banco. Não temos nenhuma necessidade especial em ter um espaço como espaço do Fatias de Cá.

Aquilo que gostávamos era que, quando os espaços são adequados a uma determinada história, pudessem ser usados. E claro que não há muitos, nem aqui nem em lado nenhum, e é uma raridade não ser nos monumentos. Tínhamos um concreto chamado Convento de Cristo mas a Câmara não manda no Convento, portanto nada a fazer. Quando agora fizemos a ‘Inês Pereira’ fomos a palacetes e casas particulares. Tem havido essa abertura, cada vez mais as pessoas se convencem que a atividade cultural é uma boa âncora para o turismo e, nesse sentido, cria movimento. As pessoas que tinham má opinião da cultura começaram a ter boa, portanto é possível mudar o seu conceito.

Carlos Carvalheiro diretor artístico do Fatias de Cá. Créditos. José Paulo Marques

Mas é possível ter má opinião da Cultura?

Há 40 anos nem calcula, chamavam-nos tudo. Aliás, há uma célebre citação de um general alemão do Hitler que dizia “quando oiço falar de Cultura tiro logo a pistola”. Penso que há muito mais gente contra a Cultura do que parece. Neste momento percebeu-se que, para Portugal, é importante, por exemplo, Tomar foi tão rico do ponto de vista de industrias e ficou sem nada. Julgo que em Tomar as pessoas que se dedicaram a atividades culturais ajudaram a suster a cidade até que ganhasse a moda e a fama dos templários e das festas dos tabuleiros, que há 40 não estava tão boa como isso, era uma chatice para arranjar pares e hoje… não é só uma atitude de vaidades ou de exibicionismos, as pessoas precisam mesmo de enriquecimento espiritual.

O que a Cultura permite, sem fé nem convicções religiosas, por isso é tão intimo. Sempre que os poderes se metem nisto para fazer propaganda, que é normalmente para tal que pagam a Cultura, criam logo esquemas de como se ganha umas massas aqui ou acolá. Mas na verdade, se for possível ter uma atividade destas, e o Fatias de Cá tem muita gente a colaborar, é um momento de memória e essa memória é que nos pode criar referências para nos comportamos como cidadãos que aceitam melhor opiniões diferentes. Percebemos que temos de nos aturar uns aos outros.

O Fatias de Cá posiciona-se a partir de três axiomas: liberdade, fraternidade e literacia. Quer explicar?

É uma espécie de Constituição. Ou seja, é indispensável que as pessoas tenham uma noção de liberdade, sentirem-se livres aqui dentro, que a fraternidade é uma coisa que tem de ser alargada também ao exterior, é uma atitude inclusiva, não há maneira de não se aceitar alguém, todas as pessoas são aceitáveis independentemente das diferenças que têm e com o mecanismo da literacia definimos aquilo que é mais importante para nós: tem a ver com o fato das pessoas saberem ler, de escolherem o que querem ler, aquilo que leem, aquilo que fazem ou aquilo que mostram ser importante para elas darem ao outro.

Não há aqui a intenção de privilegiar as pessoas que gostam de se exibir, ou as vedetas ou os desinteressados. Há uma intenção convivial que permita que em cada espetáculo, os atores e o público, sintam que foi uma experiência, um momento que possa ficar na memória.

O Carlos criou com outras pessoas o Fatias de Cá, trabalha na companhia como encenador e ator além disso é professor. Precisa de um ritmo de trabalho acelerado?

Repare, hoje levantei-me às 07h00 para escrever uma nota de imprensa sobre ‘Viriato’, às 09h30 estava a entrar ao serviço e durante seis horas tive alunos ávidos por sacar energia, entretanto vim para a entrevista, tive um momento de pausa quando fui buscar uma encomenda de livros ao Correio, e estou aqui consigo. Às 19h49 tenho um jantar na Golegã para combinar a reposição de ‘Os Relvas’ na Casa de Manuel dos Santos. Amanhã é tudo mais ou menos a mesma coisa, sendo que será mais divertido porque tenho de treinar os cavalos para ‘Viriato’ e ir buscar andaimes para levar para a Brogueira [Torres Novas], depois montar os andaimes. Portanto, é um ritmo sempre muito ativo, sim.

Tem férias, fins-de-semana e feriados?

Estou de férias seguramente há uns 60 anos. Os feriados e fins de semana são exatamente quando nós fazemos aquilo que gostámos. Muitas vezes saímos mas sempre com uma ideia fisgada: ir ver alguma coisa que pode ser engraçada. Ou seja, quase nunca há uma sensação de estar sem fazer nada, não é uma coisa fácil para muitos de nós. E para mim também não. É permanentemente uma vida de movimento.

Creio que Humberto Dinis Machado é o mais velho do grupo. Pelo que sei conta 93 anos. No espetáculo ‘Viriato’ foi o narrador. Continua a sê-lo? Com quantos atores conta atualmente o grupo? E quem é o ator mais novo?

A companhia tem neste momento cerca de 70 atores, com figurantes serão 100 ou 120. Humberto Dinis Machado é o mais velho e vai voltar a ser o narrador em ‘Viriato’. O ator mais novo terá uns sete anos. Na ‘Inês de Portugal’ estiveram vários que representaram o papel de filhos de Inês de Castro e gostam de representar, mas segurar um público não é para crianças, exige alguma competência. ‘A Flauta Mágica’ tem atores que começaram aos 9 anos e atualmente têm mais de 20, já estão a estudar na universidade e arranjam maneira de representar.

Como e onde se formam todos estes atores (há uma escola de formação do Fatias de Cá?), como se escolhem?

Tem a ver mais com o trabalho, a preparação, a formação não é teórica. Pede-se a alguém para ir fazer um papel e é preparado esse papel. Se a pessoa não tem muita experiência é um pequeno papel depois conforme o seu gosto e a disponibilidade vai aprendendo com a prática, ganhando experiência com o ato de fazer. Como as peças são feitas várias vezes e ao longo do tempo, pode ir melhorando. E como gostamos de filmar as peças sem público, para ficar com uma espécie de filme, as pessoas veem-se e aprendem com a sua própria experiência. E podemos ter duas pessoas a fazer o mesmo papel, sendo um trabalho de equipa entre os dois e um vê o outro e há uma aprendizagem.

E, claro, nos ensaios criticamos e nas estreias anotamos para criticar no briefing, se têm falta de ritmo, se estão a entrar tarde, vai-se emendando. Se uma pessoa for capaz de se concentrar vai ser capaz de fazer aquilo a que se propõe. Não há nada de metafísico ou esotérico, temos de fingir que somos outra pessoa. Memorizar o texto é a coisa mais simples de todas, normalmente baste ler o texto sete vezes e fica memorizado. O mais difícil é dizê-lo com verdade. Essa aprendizagem pode ser feita mesmo quando se está quieto e calado, basicamente tem a ver com aquilo que os olhos espelham.

E é preciso vocação?

É preciso entusiasmo. Às vezes, havendo entusiasmo, não significa que se consiga fazer bem.

Carlos Carvalheiro diretor artístico do Fatias de Cá. Créditos. José Paulo Marques

Como é dirigir homens e mulheres nos papéis principais e secundários, a importância dos menos visíveis (como o ponto, os da decoração dos palcos, etc)?

Não há ponto. Ao nível das tarefas menos visíveis há formação de equipas das pessoas tendo em conta o seu gosto, normalmente há um responsável que sabe onde estão as coisas e que coordena e arranja equipa para trabalhar consigo. Há uma divisão de tarefas, pessoas que se preocupam com a comunicação, outras com bilheteiras e reservas, outras com as refeições, e quem chega de novo à companhia tratamos de perceber o seu gosto e começa por ajudar alguma equipa. Até parece fácil!

Concorda que o teatro pode ser uma arma de afirmação identitária e de liberdade?

Não acompanho com facilidade a frase porque pode ser ou não. Por exemplo, os países comunistas usavam o teatro como fator de propaganda. Na Mocidade Portuguesa havia muitas atividades de teatro, e teatro histórico, que tinham como função as pessoas verem teatro mas também razões doutrinárias. Portanto, o teatro enquanto ferramenta é como um livro. Depende da intenção com que é feito, para quem é dirigido e o que quer dizer. Por isso, pode ser uma afirmação identitária e não ser liberdade e vice-versa. O teatro tem de divertir e emocionar, e é tudo.


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