Fayaz tinha saído para brincar quando ouviu um estrondo enorme. O menino, então com 6 anos, voltou a correr para casa, numa pequena aldeia do Afeganistão. Tinha sido atingida por uma bomba lançada das montanhas pelos Talibãs. Matou-lhe os pais e dois irmãos. Viu os corpos completamente desfeitos e nesse dia, em que ficou somente com a roupa que trazia no corpo e os dois irmãos mais novos, ainda bebés, a cargo, soube que a sua vida tinha mudado para sempre. E começou, nesse momento trágico, uma grande odisseia que o traria, 11 anos depois, para Portugal, onde aterrou há um ano com o estatuto de refugiado menor desacompanhado. Foi aqui que descobriu o que era a escola e o teatro, através do qual quer dar voz a quem, como ele, foi obrigado a deixar tudo para trás e mergulhou no inferno.
Mas a sua história começa lá longe, com o ataque que lhe mudou a vida para sempre: “Eu tinha saído para brincar e estava na casa de uma tia quando ouvi um estrondo enorme. Era a minha casa. Num segundo desapareceu tudo. Vi a cabeça do meu pai num lado e o corpo noutro. Nas casas dos vizinhos não aconteceu nada. Nesse dia perdi tudo. E só pensei: ‘E agora o que vai ser de mim? Fiquei sozinho.’” Fayaz tinha razões para se preocupar. Sobreviveram apenas mais dois irmãos. Com eles ao colo, encetou uma viagem de hora e meia a pé, sozinho, em direção à casa de uma tia. Ficou por lá cinco dias até que os familiares o avisaram de que teria de procurar outro poiso, uma forma de se sustentar, porque ali já havia demasiadas bocas para alimentar.
Fayaz obedeceu. Não havia outro remédio. Foi-se embora, foi trabalhar. “Só que quando os rapazes atingem os 10 anos, mais ou menos, os Talibãs vêm buscá-los para irem lutar. Os que não têm família são os primeiros a ir, porque ninguém quer saber deles, mesmo que morram. Eu não queria pôr bombas. Eu não queria matar pessoas. Então fugi”, conta num português vacilante mas já bem percetível.
Fugiu como da primeira vez. A pé. Pelo deserto, pelas montanhas. Pagou a salteadores para que o levassem até ao Irão. Lá chegado, foi trabalhar para uma obra.
Era lá que fazia tudo. Dormia, comia, fazia a higiene pessoal. Quando o sol se punha, partilhava uma divisão da obra com 20 pessoas. “Como era dos mais novos, tinha de lhes fazer tudo. Lavar a roupa quando eles queriam. Ajudar a fazer a comida. O que ganhava não dava para pagar um quarto noutro lado, era tudo para pagar o que comia e o local onde habitava. Não tínhamos documentos, logo também não podíamos queixar-nos à polícia. O trabalho era duríssimo. Quando alguém morria, ficava lá, emparedado no cimento. Ninguém queria saber”, recorda. E, por isso, um dia, voltou a fazer-se à estrada. Saltou mais uma fronteira, desta vez para o Paquistão.
“Atravessar as montanhas é extremamente perigoso. Muita gente morre. Tiram-te tudo. As meninas são tiradas às famílias e violadas à frente do pai e depois levadas para os Talibãs. Eu vi. É horrível. Eu vi muita coisa… todos os refugiados passam por este tipo de coisas”, conta o jovem, que agora tem 18 anos.
Mais um salto
Do Paquistão acabou por ir para a Turquia, porque entretanto conseguiu entrar em contacto com uma tia que lá vivia. Voltou a cruzar fronteiras clandestinamente e, nos primeiros seis meses, só pôde trabalhar (a limpar obras) para pagar àqueles que o tinham posto do lado de lá e que vivem à conta do tráfico humano. Fayaz tinha cerca de 13 anos. “Mas depois a minha tia ajudou-me. Pôs-me uma padaria, eu contratei outros miúdos e as coisas até estavam a correr bem… só que um dia a polícia entrou por ali adentro, espancou-nos e fui deportado. Voltei ao Paquistão e estive seis meses preso!”
A partir daí, Fayaz queria ir para a Europa. O plano passava por entrar pela Grécia através do mar. Assim que arranjava dinheiro para pagar a ‘viagem’, arriscava. Por várias vezes foi detetado pelas autoridades e voltou ao ponto de partida. Um dia, lá conseguiu pôr o pé em terra firme mas, mais uma vez, esperava-o o inferno. Foi colocado no campo de refugiados de Moria, na ilha de Lesbos, uma autêntica prisão para milhares de pessoas e onde as condições de sobrevivência são desumanas.
“Tens de estar horas na fila para poder beber água ou para comer um pão. Quando consegues, outros mais velhos chegam ao pé de ti e tiram-te tudo… se não deres… matam-te”, recorda.
Estava no campo quando este foi devastado por um grande incêndio. Fayaz escapou por pouco à morte e foi esse incidente que acabaria por lhe dar o passaporte para chegar a Portugal. As Nações Unidas ordenaram que todos os menores que estavam sozinhos fossem retirados do campo. Diversos países europeus ofereceram-se para acolhê-los. Portugal foi um deles. Mesmo assim, Fayaz só recebeu carta verde para seguir para um país de acolhimento dois anos depois. Até lá, ficou num centro para imigrantes em Atenas. Quando lhe disseram que vinha para Portugal, pouco ou nada sabia sobre o nos- so País. “Na minha língua, Portugal significa laranja, mas depois lembrei-me que o Cristiano Ronaldo era de Portugal e fiquei feliz. Era a única coisa que sabia de Portugal”, relata. Chegou em abril de 2020, em pleno confinamento ditado pela pandemia. Apesar das ruas desertas, achou bonito o que viu. Ficou instalado na Fundação O Século, no Estoril, foi à praia, viu o mar. Depois foi pela primeira vez à escola, a EB 2,3 da Galiza e, por lá, começou a fazer teatro.
Subir ao palco
Quando Carlos Pessoa, diretor artístico do Teatro A Garagem, e Paulo Sousa Costa, da Yellow Star Company, criaram o espetáculo ‘Abano’, sobre o drama dos refugiados, pediram ajuda à Câmara de Cascais para encontrar jovens nessas circunstâncias que tivessem o perfil necessário para a peça. Fayaz foi um deles. “Ouvi toda a história dele e não pude ficar indiferente. Eu próprio também vim com a minha família de Angola, há muitos anos. Apesar de tudo o que passou, o Fayaz tem aquele sorriso, uma imensa disponibilidade. Entretanto, soube que trabalhava num restaurante de um centro comercial a ganhar 350 euros por sete horas de trabalho diárias. Não pude aceitar que, agora que ele tinha finalmente chegado a um porto seguro, continuava a ser explorado!”, indignou-se Paulo Sousa Costa.
Por isso, não só lhe deu o principal papel de ‘Abano’ – apresentado no auditório do Taguspark, em setembro – como o contratou a tempo inteiro para a companhia. Fayaz ficou profundamente agradecido. “Aqui ganhei uma família”, garante. Já andou em digressão com a companhia, mas vai variando de funções para que possa descobrir “a sua vocação”, conforme frisa Paulo Sousa Costa.
A Carlos Pessoa coube a tarefa de o “ouvir horas e horas a fio, para poder escrever a peça e contar a sua história”, explicou o encenador.
Entretanto, por ter atingido a maioridade, Fayaz deixou a Fundação O Século e alugou um quarto para morar. Está a tirar a carta, quer inscrever-se num curso técnico profissional, sonha ser pugilista e continuar a fazer teatro, “porque eu quero dar voz a todos os refugiados. O que eu conto não aconteceu só comigo. Acontece a todos os refugiados do mundo inteiro. Porquê? Os refugiados só querem uma oportunidade, só querem poder viver em paz, ter direito a uma vida normal. E é isso que eu sinto que tenho de dizer quando estou no palco”.
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