Nascido em Cabo Verde, filho de cabo-verdianos e irmão de quatro rapazes e duas raparigas, conhecia bem a palavra Tarrafal. Sabia o que era e para que servia. Amílcar Cabral – mais que Aristides Pereira – era uma figura querida e proibida, de quem se falava apenas em surdina.
Acabei a 4.ª classe em 1965, ainda não chegara o auge da guerra.
De qualquer forma, Cabo Verde foi uma colónia especial. As grandes fazendas estavam em mãos de mulatos cabo-verdianos, pertenciam a famílias nascida e criadas em Cabo Verde. Na Ilha do Fogo, onde nasci, era assim. Não havia guerra.
Na minha ilha, a maioria das crianças estudava. E trabalhava. Eu andava no 2.º ano do liceu quando me empreguei numa empresa de montagem de instalações elétricas. Os patrões repararam e acreditaram em mim, de tal maneira que se propuseram pagar-me os estudos na Metrópole.
Cheguei a Lisboa em 1968, com 16 anos, sozinho, já matriculado no Curso de Eletricidade da Escola Industrial Marquês de Pombal. Era o único negro da escola. Poucos mais havia na cidade.
Muito franzino, não conhecia ninguém. As pessoas olhavam-me com estranheza. Na altura, parecia-me um olhar carinhoso. Talvez não fosse. Desconhecia a palavra racismo. Naqueles anos, os raros negros que vinham para a Metrópole vinham estudar. Hoje, os muitos que chegam estão destinados aos piores trabalhos. Hoje, sim, há racismo.
Fui morar para o Campo de Santana. A casa, particular, pertencia à empresa. O primeiro Natal foi muito triste. Sozinho, sem família e sem amigos. Sem telefone – comunicava com a família apenas por carta. Talvez tenha chorado, não me lembro.
Cheguei a Lisboa em agosto, vestido com camisa de meia manga e calças leves. Ninguém me preparou para o frio. De repente, em meados de setembro, gelei. A empresa foi comprar-me roupa ao Martim Moniz, mas parecia que nada me aquecia.
A comida foi outra dificuldade. Habituado ao arroz, ao feijão, ao milho, a muito peixe, peixe maravilhoso, ainda hoje recordo o momento em que, no pequeno restaurante onde a expensas da empresa comia diariamente, puseram à minha frente bacalhau cozido. Aquele cheiro horrível. Os vómitos. De repente, desapareceram da minha vida a papaia, a banana, a manga, a goiaba. O caju. Só comia maçãs e peras.
A certa altura, a empresa mudou-me do Campo de Santana para uma casa em Alcoitão. Aí sim, fiz amigos. Continuava a ser o único negro do grupo, mas já me sentia integrado. Passeávamos pelo Estoril e por Cascais. Organizámos jogos de futebol. Apesar de franzino, era muito duro. E cheio de sonhos: imaginava-me na equipa do Benfica, onde jogavam Eusébio e ainda o meu ídolo: o senhor Coluna.
Depoimento recolhido por Alexandra Tavares-Teles
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