Ser voluntário no LOQUI é ensinar a pescar

Projeto de alfabetização vive do voluntariado e de alunos com vontade férrea de aprender.

Na manhã chuvosa de sábado Ricardo Rodrigues ocupa algumas horas do seu tempo livre ao projeto LOQUI. E é numa pequena sala do polo comunitário do Zambujal, em S. Domingos de Rana, que os professores Ana e Ricardo recebem seis esforçados alunos dispostos a aprender a ler e a escrever ou, como dirá Mari da Silva, “a saber juntar letras para poder chamar palavras”.   E adiante veremos que não são palavras pequenas, são palavras que têm a grandeza da dignidade, são como chaves da porta de uma realidade que nunca experimentaram, nem em criança.

Recrutadas nos bairros, em ocasiões de maior concentração de população, como por exemplo a feira do Zambujal, estes alunos são arrancados ao mundo do silêncio, pescados na sombra que esconde a identidade ou a resume a um número fiscal, troco de uma força hercúlea de sobrevivência.

Alguns destes alunos, “moram em Carcavelos e vieram a pé até ao Zambujal”, diz-nos Ricardo Rodrigues. Percorrem mais de quatro quilómetros, para degustar as poucas horas de descanso na sua atribulada jornada de trabalho semanal, entre as limpezas nas grandes superfícies, ou em casas particulares, mais os afazeres caseiros, mais os filhos ou, no caso dos homens, o trabalho sobretudo na construção civil.  E este curto tempo de consciência de que a existência é muito mais que a força de trabalho, dedicam-no elas e eles a aprender a juntar palavras, outrora sem grande sentido, agora coerentes como luzes que iluminam caminhos, embora ainda esconsos, sinuosos, mas já não tão imprevisíveis.

Mari da Silva, por exemplo, tinha 12 anos quando veio da Guiné-Bissau para Portugal: “Meu pai disse-me que se eu fosse à escola não casaria. Por isso fiquei assim”. E assim é adormecida, atropelada pela vida.  Agora, garante-nos Mari, nunca falta, só se estiver doente: “Pergunte à minha professora”. A professora Ana consente num sorriso.

E ali estão, aluna e professora como numa máquina do tempo, roubando anos ao passado, gastando apenas algumas horas ao presente, sabendo que, no futuro, esse tempo roubado ao passado vai querer ser vivido como antes nunca foi.

Cecília Mendes é outro caso, também ela veio da Guiné-Bissau e também ela a despertar da dormência de uma vida gasta, agora disposta a despertar para um mundo novo. Diz-nos: “Vim a uma junta médica para curar a minha anca”. Ficou por cá, agora está a aprender a escrever e a ler, e porquê? “Porque chego ao hospital e não consigo falar com o médico, porque estou em casa porque não consigo trabalho. É por isso que venho aprender a falar. Para perceber o que as pessoas me estão a dizer”. Reparem como, para Cecília, a palavra é uma chave que serve em múltiplas portas. O acesso à saúde, o acesso ao emprego, a mobilidade que lhe aporta a liberdade. E Cecília não é diferente da Mari, nem da Francisca Dália que veio de Angola em 1974, mas que tem vivido fechada no mundo do silêncio e da sombra numa casa cheia de família.

Rodrigo fala-nos destas pessoas como flores que despontam, valorizando esta nobre causa com generosidade, isto é, desvalorizando o seu crucial papel. “Não me interessa de onde vêm, para mim o importante é que consigam não precisar de ninguém para viver, para apanharem um autocarro, para arranjarem um emprego, para irem ao médico. Porque, afiança Ricardo, “para estas pessoas ter um simples número de contribuinte é um salto enorme nas suas vidas e nós podemos ajudá-los”. Na verdade, o Ricardo, no velho ditado chinês, ajuda-os a pescar.

Ainda não falamos do projeto LOQUE, que na verdade, aqui, aos poucos, fomos desvendando. Tem o apoio da Câmara Municipal de Cascais, mas é sobretudo a generosidade dos Ricardos e das Anas e dos muitos que lhes seguem as pisadas, o exemplo, ensinando letras que se juntam em palavras que pingam dignidade nas vidas desta gente. CMC/HC/PR/PS


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