Viagra, a tecnologia de ponta

Diz-se que na pequena vila de Ringaskiddy, condado de Cork, República da Irlanda, se tornou real um dia, não faz assim tanto tempo, aquele velho adágio de não haver fumo sem fogo. Ao princípio, contaram os de lá, foi algo que cresceu quase inadvertidamente, como um fenómeno involuntário da natureza, às vezes tão súbito que mais parecia um reflexo. Já iam uns bons anos em que tal não acontecia por aqueles lados.

Não quer dizer que não acontecesse. Ia acontecendo, que é uma coisa diferente. Com o tempo, no sentido da longevidade, tornou-se como o tempo, no sentido meteorológico. De vez em quando, lá irrompia um raio de sol na letargia. No primeiro caso, toda a gente sabe, o tempo aprimora umas coisas, deteriorando outras, sendo o inverso igualmente verdadeiro e a verdade o que fica sensivelmente ao centro, sujeito à hidráulica da vida, em piruetas de vórtex.

Os mais velhos, fiéis guardadores da memória de Ringaskiddy, puseram-se a pensar se não estaria a decorrer ali uma retro-epifania, que estranhamente lhes tinha trazido de volta, com saudosa energia, mecanismos do passado, uma espécie de elixir paranormal, que se pôs a exorcizar a sua masculinidade, quando e onde menos se esperava. Ou isso ou a ocorrência de um placebo colectivo, que era uma tese ainda mais bizarra, que não cabia na cabeça de ninguém, que desafiava a lei da gravidade e até o próprio Newton, tal não era a extravagância do fenómeno, que crescia entre a realidade e a ficção, sem qualquer nicho científico que lhe oferecesse guarida.

De qualquer forma, pela ordem das coisas e dos coisos, o que era de todo invulgar era aquele eufemismo de haver sol todos os dias e todas as noites também. Passava-se em Ringaskiddy uma qualquer anomalia “benedicta”, que do nada reconquistava proeminência no seu quotidiano. Por aquele andar, não só a culpa não ia morrer solteira, como ainda teria descendência.

Como é próprio dos lugares pequenos, em que toda a gente vai à missa aos domingos, todos se tratam pelo nome próprio, em que a vida alheia é a actividade predominante, o rumor é uma arte tão ancestral quanto a ressaca. Numa rede social em carne viva, com a tecnologia do diz-que-disse, não há segredo que esmoreça. Tanto este se partilhou, que deixou de ser segredo, para se elevar à categoria de mistério, como se a colectividade fosse um músculo cavernoso, com a imaginação a exercer o efeito dos mais competentes vasodilatadores, passando-se muito rapidamente da suposição ao facto.

Era um facto, mesmo que fosse um tanto ou quanto esotérico, que algo andava no ar. Era uma expressão, pois ninguém acreditava que fosse um vírus, muito menos “airborne”. Havia que seguir alguma lógica e esta apontava mais para o estado líquido. Podia ser alguma coisa na cerveja, já que é o bem de consumo de qualquer irlandês que se preze. Nem é preciso recordar a abençoada e longa relação – tanto quanto se sabe, tão longa quanto a Idade do Bronze, muito para lá de qualquer boda com o mesmo título – que os irlandeses têm com a ordem de malte, pois nesta pátria se diz que até St. Patrick, apóstolo e padroeiro da Irlanda, tinha um cervejeiro particular. Pela mesma ordem de razão, também o whiskey era suspeito.

Em ambos os casos, porém, não se justificavam tão jactantes propriedades, que os involuntários receptáculos não continham, descrevendo-as como efeitos secundários de alguma coisa benigna e de longa duração. Caso contrário, era não menos do que a descoberta do século. O que até não andava muito longe da verdade, embora não tanto como os de Ringaskiddy a caracterizariam mais tarde, já muito depois do lendário “baby boom” que ali ocorreu, ao arrepio da coerência demográfica. Fosse o que fosse que estava a acontecer, estava a acontecer aos homens, embora as mulheres também o notassem, pois em alguns casos era demasiado notório.

Foi em 1996 que a Pfizer registou a patente deste fármaco. © Créditos: Shutterstock

Para tirar a questão do armário: erecções. Uma vaga de erecções. Inoportunas, adequadas, repentinas, atempadas, inquietas, paralisantes, desejadas e indesejadas, vestidas e despidas, sós ou acompanhadas, em inglês, em gaélico, com álcool, sem álcool, com romance, sem romance, com estímulo, sem estímulo, na saúde e na doença, como nos casamentos, em casa, na rua, no trabalho, no lazer, nas lojas, nos pubs, nos supermercados, onde dava jeito e onde não dava. Por Deus, até a andar de bicicleta.

Os homens de Ringaskiddy, segundo os seus próprios testemunhos, tinham erecções que nunca mais acabavam. Para quem estivesse a observar o fenómeno de fora, podia ser um retrato do paraíso. Para os de lá, a questão tornou-se de certo modo desconfortável, só ultrapassada pelo tradicional sentido de humor irlandês, que todos os santos dias acrescentava um ou outro capítulo ao manual. Até ao final da década de 90, do século passado, Ringaskiddy era uma localidade marcadamente rural. Aquilo que os urbanitas das grandes cidades definem como pasmaceira, ali era uma instituição muito apreciada. Dava a impressão que os dias eram iguais aos outros e que era exactamente dessa maneira que eles gostavam, sem tirar nem pôr, digamos assim.

Levou algum tempo até se formar convenientemente o mito. Foi duro, mas lá se chegou. Numa comunidade temente a Deus, havia quem dissesse que o diabo se tinha escondido outra vez nos detalhes. Os mais racionais diziam que foram antes as evidências a esconder-se de novo no óbvio. Onde há hoje uma forte cintura industrial, em 1997 só existia paisagem. Em finais de 1998, tudo isso mudaria.

O fumo do amor

Não foi propriamente com esfuziante alegria que em Ringaskiddy se recebeu a notícia da chegada da primeira unidade industrial no seu território: a Pfizer Ireland Pharmaceuticals. Vinha aí um admirável mundo novo, comunicaram-lhes, cheia de tecnologia de ponta, postos de trabalho, prosperidade. A maior parte da população já não era assim tão nova que acreditasse em contos de fadas industriais. Apesar de uma forte corrente de oposição aos ventos de mudança, valores mais altos se levantaram. Em menos de um ano, o laboratório local da Pfizer Pharmaceuticals estava a laborar. E, para perturberante espanto dos locais, toda a actividade da fábrica se concentrava numa única droga: Viagra. O comprimido azul, em forma de losango, que estava a mudar o mundo. Mal sabiam o quanto iria mudar o seu.

Em 2017, uma reportagem da revista americana Newsweek foi àquela localidade irlandesa para tentar deslindar o mistério, que já era duradouro, por ali ficando como uma foto de família. Em quase duas décadas, a população de Ringaskiddy tinha rejuvenescido. A muitos dos mais velhos tinha acontecido algo que não é muito vulgar: tinham sido pais e avós quase ao mesmo tempo. Quando a fábrica se instalou ali, sabiam lá eles o que era o Viagra.

Nesses tempos, a internet dava os primeiros passos da sua globalização. A informação não tinha nem por sombras a velocidade alucinante de agora. Era tudo mais lento, mais artesanal. Só as más notícias corriam depressa. E, de início, a fama do paralelogramo mágico, não era a melhor, pois o imaginário popular, não o entendia como um medicamento certificado para a disfunção eréctil, mais como uma mézinha, da categoria da charlatanice. O sucesso do Viagra, porém, foi tão rápido quanto o seu efeito. Num ápice tornou-se num dos medicamentos mais vendidos a nível planetário. Se vendia bem por aqueles lados? Não vinha ao caso.

Em Ringaskiddy, essa lenda tornou-se poderosa, até se transformar num produto turístico, que os de lá vão alimentando com orgulho, pois há razões muito piores para uma localidade ficar no mapa. Sabe-se lá como, começou a correr a versão de que eram os fumos provenientes da fábrica de Viagra que causavam nos habitantes todos os efeitos descritos na bula. Não é que se queixem. “Temos aqui há anos o fumo do amor. E de graça”. É claro que a Pfizer tinha uma palavra a dizer sobre isto. E, mesmo sem querer retirar méritos a tão pujante população, tão profícua em matéria de amor, tinham de esclarecer que tal não podia dever-se a qualquer tipo de fumo das suas chaminés. “O nosso processo de manufactura é altamente sofisticado e regulado”, afirmou um responsável da Pfizer Ireland Pharmaceuticals, acrescentando que o fumo, no seu ramo de indústria, não passa de uma mistificação, quase tão grande como a que nasceu, cresceu e, pelos vistos, perpetuou naquele lugar, que se diz afrodisíaco.

Para sossego e gáudio dos orgulhosos vizinhos, restava salientar que, sem desejo sexual, qualquer fármaco da especialidade (actualmente, já são vários) perde eficácia. Já agora: Não havia uma explicação mais racional para esta ocorrência colectiva? Será que o acesso ao Viagra não terá espevitado o seu consumo nos habitantes, alguns deles trabalhadores da fábrica? Não seria mais fácil ceder a esta potente ficção do que reconhecer o estigma da disfunção sexual, o velho medo de o trazer à superfície? Não se sabe, nem se vai saber. O “boom” eréctil daquela localidade, na verdade, está em paralelo com a sua trajectória no mundo inteiro.

Actualmente, o mercado global dos fármacos para a disfunção eréctil, que naturalmente decresceu durante a pandemia covid-19, voltou a atingir valores estratosféricos, representando para a indústria farmacêutica lucros que rondam 3,9 mil milhões de euros. Para simplificar: a cada nove segundos que passam, alguém toma um comprimido destes. Neste momento, a escolha já é alargada, sendo também democratizada com a produção de genéricos à escala mundial. Existem actualmente mais de 20 genéricos no mercado, sem contar com o mercado negro.

Uma história de “sucexo”

O Viagra, que cumpre este ano o seu 25.º aniversário, continua a ser o maior sucesso da história da indústria farmacêutica. Uma verdadeira revolução social, que começou num acidente científico. No início dos anos 90 (século XX), a Pfizer, poderosa multinacional, com sede nos Estados Unidos da América, já tinha investido largos milhões de dólares para desenvolver um medicamento eficaz para a hipertensão arterial e para patologias cardiovasculares como a angina, as chamadas dores de peito, causadas pela diminuição do fluxo de sangue no coração.

Os cientistas da Pfizer procuravam um “best-seller”, mas esbarraram em resultados desanimadores, acabando por tropeçar numa infinita jazida de ouro biofarmacêutico. Em 1992, depois de mais de dois anos de pesquisas e de um avultado investimento, a multinacional americana acabou por atirar a toalha dos milhões ao chão. Mas, lá ao fundo do túnel do insucesso, uma pequena centelha reluzia.

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Nem tudo estava perdido para a Pfizer e para a condição masculina, seja lá o que isso for. Os cientistas tinham detectado propriedades interessantes no “citrato de sildenafila” que, tudo indicava, demonstrava bons níveis de eficácia num dos segredos mais escondidos do planeta: a disfunção eréctil, que normalmente se define como incapacidade de um homem manter (ou ter) uma erecção o tempo q.b. para a actividade sexual dentro dos parâmetros considerados normais. Exactamente por isso, um estigma com impactos devastadores, mas sem estatística possível, que por inerência afectava não só os homens, como as relações, as famílias, as sociedades, numa espiral antropológica de proporções incalculáveis.

A descoberta das propriedades da sildenafila não surgiram do nada. No decurso dos diversos testes científicos, descobriu-se em cobaias humanas que o efeito pretendido na angina era pouco mais do que residual. Nos exemplares do sexo masculino, saltava à vista um efeito, nessa altura colateral. Tudo indicava que a sildenafila actuava eficazmente na disfunção sexual. A Pfizer rapidamente reorientou o foco da investigação e o investimento para a produção de um fármaco próprio para a disfunção eréctil, território virgem na indústria farmacêutica.

Apesar da incerteza dos números, a multinacional americana estava certa de um potencial avassalador. Posteriores ensaios clínicos em 3.700 homens, escolhidos aleatoriamente um pouco por todo o mundo, com idades compreendidas entre os 19 e os 87 anos, todos com problemas de disfunção eréctil pelas mais diversas causas, desde o prosaico sedentarismo, obesidade, historial de diabetes, aos casos mais complexos, decorrentes de cirurgias na próstata ou de traumas graves na coluna vertebral, confirmariam os melhores augúrios.

Em 1996, a Pfizer registou a patente deste fármaco. E, em 1998, fez-se história. A Food and Drug Administration americana aprovava o primeiro comprimido certificado para o tratamento da disfunção eréctil. Um pequeno passo para o homem na sua individualidade, mas um grande passo para a Humanidade. E, já agora, para os cofres da Pfizer. Assim à primeira vista, segundo as mais modestas estimativas da gigante farmacêutica, acendia-se uma luz de esperança para mais de 100 milhões de homens neste mundo disfuncional.

O Viagra começou a ser comercializado no ano seguinte. Do ponto de vista do mercado farmacêutico, há um a.V e um d.V.. No EUA as receitas deste medicamento numa semana foram superiores a qualquer outro no ano de 1999. Pouco mais de uma década depois, o Viagra já era comercializado em mais de 110 países, com lucros astronómicos.

Nos tempos que correm, o Viagra nunca vendeu tão pouco, mas as drogas para a disfunção eréctil nunca venderam tanto. Este aparente paradoxo tem a ver com dois factos que se relacionam. As vendas de Viagra começaram a descrescer a partir de 2013, altura em que expirou a patente da Pfizer para a utilização do sildenafil para a UE e para mercados relevantes, como o japonês. Em 2017, a Pfizer Inc. viu-se obrigada a um acordo num longo processo de patentes nos EUA, permitindo a comercialização de génerico do Viagra, o que afectou significativamente as suas margens de lucro do “diamante azul”, inversamente proporcional à expansão dos seus sucedâneos.

Os EUA permanecem ainda o maior consumidor de drogas para a disfunção eréctil no mundo, já ameaçados por um conjunto de países do Médio Oriente, liderados pela Arábia Saudita, seguidos pelo Egipto e os Emirados Árabes Unidos.

Os EUA permanecem ainda o maior consumidor de drogas para a disfunção eréctil no mundo, já ameaçados por um conjunto de países do Médio Oriente, liderados pela Arábia Saudita, seguidos pelo Egipto e os Emirados Árabes Unidos, que em conjunto gastam mais de 1,2 mil milhões de euros anuais nestes medicamentos. Nestes países, a faixa etária dos consumidores é surpreendentemente (ou não) baixa. Este tipo de fármacos tornou-se moda nos mais jovens e nos menos jovens também, não necessariamente associados à disfunção eréctil, mas como intensificador do desempenho sexual.

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Em Portugal, com a devidas proporções, faz-se o que se pode. E não é pouco. No primeiro ano de mercado, 1999, venderam-se pouco mais de 100 mil caixas de Viagra, fruto dos preconceitos da praxe e das desconfianças em relação ao comprimido “milagroso”. Actualmente, vendem-se mais de um milhão de caixas por ano, sem contar com as marcas concorrentes no mercado.

Apesar das quebras, o Viagra, que já se tornou num clássico da disfunção eréctil, não deixa de proporcionar avultados lucros à Pfizer Inc.. A história e o mercado parecem demonstrar que não há comprimido como o primeiro. Globalmente, o sucesso do comprimido azul niagara mantém-se firme um quarto de século depois. De outra forma, não seria possível esta notícia que, parecendo que não, faz todo o sentido: 14 anos depois, em 25 da sua história, o Viagra ganhou pela segunda vez a Copa União, no município pernambucano de Quixaba (Brasil), vencendo o Motorista nas grandes penalidades. Resta acrescentar que se trata do Viagra Esporte Club. E que esta vitória foi conquistada após prolongamento.

(Autor escreve ao abrigo do antigo acordo ortográfico.)

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