Queria escrever sobre as mulheres da luta do Povo da Guiné-Bissau que combaterem contra dois colonialismos, como dizia a guerrilheira e política Carmem Pereira. Mulheres que sabem fazer revoluções românticas que ficam na História de África, em particular, e do Mundo, em geral, como referência de quem “combateu um bom combate”.
Escrever sobre esse povo que faz revolução pelo sorriso das suas crianças, pela alegria de cada um e de todos e pela prosperidade das Tabankas. Desse Povo que na hora da solidariedade não regateia e que diariamente celebra a sua guineidade e africanidade.
Ainda pensei em falar de filosofia e hospitalidade africanas na Guiné-Bissau ou da minha viagem para este país como africana de Angola com visto no passaporte (que devia ser dispensado, tal como acontece com o Benin, Moçambique, África do Sul e outras partes do continente) e todas as formalidades burocráticas a que viajantes estrangeiros estão sujeitos.
Apesar dessas formalidades, ao aterrar em Bissau percebi que estava em casa, num lugar que também me pertence pela História, Cultura e Política, como deviam ser todos os lugares dessa Mátria-África, o continente do presente e, indubitavelmente, do futuro.
Eu queria escrever sobre o meu reencontro com a Lucette Andrade ou Cabral, a única amiga que tenho em comum com a heroína angolana Deolinda Rodrigues, referência intelectual e política da luta contra o regime colonial, fascista e racista português.
Porque estar com Lucette em Lisboa, Bissau ou Boé (neste último lugar, ela foi testemunha e participante directa da luta e da proclamação da Independência da sua Guiné-Bissau), é recordar Deolinda Rodrigues, os seus ideais e convicções, bem como a determinação em lutar por uma África livre e pela libertação da Mulher do jugo machista.
É sempre um regalo, ouvir a Lucette descrever Deolinda Rodrigues de quem era “muito amiga”, e com a qual comungava “os mesmos pontos de vista sobre as nossas lutas e o lugar da mulher nas lutas. Encontrávamo-nos, muitas vezes, em conferências internacionais e visitas a países alados da nossa luta”.
Ouvir Lucette, ex-mulher de Luís Cabral, dissertar sobre a sua amiga Deolinda Rodrigues e as peripécias por que passaram pela conquista da Liberdade contra os imperialismos é um bálsamo e é perceber que a versão oficial angolana fica aquém da dimensão da heroína nacional.
Queria escrever sobre isto tudo, mas Boé é muito forte, é espiritual e emocionalmente tão forte que me conduz, naturalmente, para a luta de Amílcar Lopes Cabral, os feitos deste ideólogo da “Unidade e Luta”, que para vencer a Revolução priorizou o colectivo em detrimento do individual.
Assinalar 50 anos da heróica Independência dos irmãos guineenses é falar de Cabral, o líder de líderes, o artífice da unidade Guiné-Cabo Verde, o homem que “veio ao Mundo com uma missão: libertar a Guiné-Bissau e Cabo Verde”, diz-me, em conversa, num jantar em Bissau, o comandante Júlio César de Carvalho, cabo-verdiano, 80 anos, antigo combatente do PAIGC, que lutou nas matas da Guiné ao lado de Cabral.
E acrescento eu, indagando, não terá nascido para libertar África e mostrar ao mundo como se faz uma Revolução libertadora, sem transigir nos ideais e colocando sempre a vontade das populações à frente de tudo, sacrificando, se necessário, o amor e a paixão?
Assistir às comemorações dos 50 anos da Independência, proclamada unilateralmente, pelo PAIGC, a 24 de Setembro de 1973, nas históricas Colinas de Boé, é também homenagear Cabral pelos seus belos escritos, como o texto “Resistência Cultural”, que estudei na minha 8.ª classe, em Luanda, e que me mostrou a dimensão do líder revolucionário e estratega, pedagogo, exímio diplomata, o agrónomo que conhecia cada palmo da sua Guiné.
Cabral, que me lembrou com muito entusiasmo o comandante Júlio César de Carvalho, aproveitou o censo rural (levantamento das populações rurais que as autoridades coloniais o obrigaram a fazer, numa espécie de castigo para o afastar de actividades políticas clandestinas contra a subjugação do seu Povo) para conhecer a terra, as condições de vida das populações exploradas e subjugadas e sensibilizá-las para a tomada de consciência sobre a sua situação.
Estar em Boé, numa cerimónia solene de celebração desse feito heroico, organizada pela Assembleia Nacional Popular, Parlamento guineense, é compreender a História e a diferença que faz na vida dos Povos da Guiné e de Cabo Verde e de África ter ou não ter Cabral, como ter ou não Kwame Nkrumah.
Celebrar 50 anos do programa mínimo do PAIGC, sob chuvas torrenciais, debaixo de tendas, com mais de três mil pessoas que se mobilizaram para defender a conquista de Cabral, contra a tentativa de dirigentes que pretendem matar a herança política de um dos maiores revolucionários de África, cujo pensamento e acção são estudados em todo o Mundo, é um momento que nos marca para a vida.
Celebrar 50 anos de Independência em cerimónia solene, sem uma única gravata, nem saltos altos, em que ténis e chinelos se destacaram, é uma lição de humildade que equivale a dar prioridade ao conteúdo e não à embalagem e afirmar que sem conteúdo de pouco ou nada servem pomposas e luzidias embalagens. Isto também é homenagear Cabral.
É desonesto celebrar 50 anos da Guiné-Bissau livre do colonialismo português sem falar dessa difícil luta do PAIGC e da adesão do Povo guineense à luta desse partido que nasceu o Partido Africano para a Independência, PAI, sigla que que hoje faz parte da coligação vencedora absoluta das legislativas de 4 de Junho último, PAI Terra Ranka.
No País de Cabral, de Titina Silá, de Carmen Pereira, Nino Vieira, Aulé Na Biutcha, Domingos Simões Pereira e tantos outros, só o Presidente, um “jovem” feito político com e na Independência, consegue a “proeza” de, em mensagem vídeo dirigida aos milhares de celebrantes do 24 de Setembro, ignorar a luta do PAIGC e de Cabral para a conquista da Independência.
Celebrar 50 anos é também lembrar que é alta a tensão política na Guiné, onde o Presidente retirou dos feriados nacionais o 23 de Janeiro (1973), dia do reaccionário assassinato de Cabral, assim como o 3 de Agosto (1959), massacre de Pindjiguiti, desencadeado por forças coloniais portuguesas contra os trabalhadores do Porto local, resultando na morte de dezenas de guineenses e centenas de feridos.
Nesta tentativa de revisionismo histórico, o político em causa, o maior derrotado das últimas legislativas, anuncia a transferência da “sua” celebração da Independência para 16 de Novembro, com a presença de dignatários africanos e europeus de quem se espera que se demarquem dessa campanha pela destruição do legado de Cabral e do PAIGC, sob pena de pactuarem com a falsificação da História da Guiné-Bissau.
Em Boé, fronteira com a Guiné-Conackry, recordei-me do inestimável e decisivo apoio, político, logístico, militar e financeiro do Governo de Sekou Touré à luta do PAIGC, constituindo-se na retaguarda segura de Cabral e seus e suas camaradas, contrariamente ao vizinho do norte, o Senegal de Sedar Senghor que colocava entraves ao PAIGC.
Nas celebrações, heróis e heroínas, políticos e combatentes da Guiné e de Cabo Verde, intelectuais africanos, sonharam juntos na transformação de Boé num espaço de investigação histórica, um ponto de encontro de cabralistas, cabraleiros e cabrólogos falarem dos seus trabalhos e ideias.
Na Guiné, depois de ver um filme que sublinha a proximidade e cumplicidade entre Cabral, Agostinho Neto (Angola) e Marcelino dos Santos (Moçambique), lembrei-me da solidariedade dos irmãos e irmãs militares guineenses que em 1974/75, mesmo antes da chegada dos “internacionalistas cubanos”, aterraram em Angola para lutar junto das “Gloriosas FAPLA” na defesa do País, atacado pelos “carcamanos, pelo imperialismo internacional e seus lacaios”.
Lembrei-me e homenageei esses bravos e bravas militares, homens e mulheres da Guiné-Bissau, que também derramaram o seu sangue por Angola, pela preservação da Soberania Nacional.
Na celebração dos 50 anos, quase tantos como os meus anos de vida política, fui ao encontro da História, em Boé, Gabú, Bafatá, na Guiné-Bissau, terra que sinto como minha, também para afirmar “Cabral NUNCA ka mori”, como disse o amigo Silvino da Luz, veterano combatente e diplomata cabo-verdiano.
Ondjarama, Guiné-Bissau!
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