O Coala Festival, que ocorre nos dias 15, 16 e 17 de setembro, no Memorial da América Latina, em São Paulo, anunciou nesta terça-feira (11) mais dois shows em sua programação: Don L e Jorge Ben Jor. Símbolo da música popular brasileira, Jorge Ben Jor sobe ao palco no domingo (17), último dia do evento. Já o rapper do Don L apresenta o seu show com banda no sábado (16).
Cearense radicado em São Paulo, Don L levará para o festival o repertório de seu disco mais recente, o elogiado e premiado Roteiro Pra Aïnouz, Vol. 2. Parte de uma trilogia autobiográfica, o álbum é o mais político da trajetória do veterano do rap, que propõe a partir de sua história uma nova relação com o passado e o futuro do Brasil.
Em entrevista à GQ Brasil, o rapper nascido Gabriel Linhares da Rocha conta como funciona seus processos criativos na composição a produção de novas músicas, revela suas impressões sobre os primeiros meses do novo governo Lula, fala sobre suas ambições no mercado da moda e garante que o público do Coala verá “o melhor show que a gente fez até agora”. Confira:
GQ Brasil: Por que Don L?
Don L: Quando a gente começa no rap tem que ter um vulgo. Quando eu comecei, o meu era Arcanjo Loco. Pensei que poderia ser um nome melhor, aí tive a ideia de Don Loco, que vinha de uma música do Jay-Z. Eu escutava uma frase dele, achando que ele falava “dom louco”. Só que nessa época eu não sabia quase nada de inglês e ele não falava “dom louco”. Depois eu quis tirar o “loco” porque era muito redutor, não me representava mais. Nessa época, eu ainda não tinha gravado nada relevante ainda, mas queria mudar de nome artístico. Daí pensei em Don L, porque o L fica livre para o que eu estiver a fim de que seja representado no momento. Tem um som que eu falo “e o L esse ano é pra liberdade”. Depois eu ainda descobri que Don Eli Lee é o nome de um grande poeta afro-americano que inspirou os Last Poets, que são os precursores do rap. Basicamente, os Last Poets inventaram o rap. Esse tema é controverso, mas eles foram um dos primeiros a gravarem “spoken word”, a poesia falada, em cima de instrumentais de jazz, como se fosse um sarau musicado. E essa é a minha versão oficial hoje: “ Don L é uma homenagem a um cara que inspirou os primeiros rappers”.
Como e quando você encontra o rap e você entende que tem talento para compor?
Em primeiro lugar, eu era um fã de rap. Eu escrevia uns versos em folha de caderno para desabafar, sem nenhuma pretensão. Eu lembro que tinha um disco, que não era nem de instrumental de rap porque a gente não tinha acesso a isso em Fortaleza, mas tinha um disco antigo da Sade com uma faixa instrumental que até hoje eu gosto. Acho que é o Stronger Than Pride o disco que tem essa faixa. Eu comecei a rimar em cima desse instrumental e gravar no gravador Panasonic, mas sem nenhuma pretensão. A partir de certo ponto, eu fui atrás de conhecer a rapaziada do movimento hip hop da cidade. Eu nem pretendia me envolver como rapper, eu queria mesmo era estar próximo da rapaziada, que era o bagulho que eu acreditava e tal. Minha ideia era tentar uma carreira como produtor, eu estava muito sem perspectiva naquela época. Eu era jovem e estava sem um emprego fixo ou uma profissão. Eu vendia CDs piratas numa mobilete pela cidade. Aí teve um momento que eu comecei a fazer pra mim mesmo, porque eu comecei a me envolver com a rapaziada do movimento.
Fui numa oficina com os caras que gravaram a primeira coletânea de rap de Fortaleza e comecei a produzir com eles. Foi uma galera de São Paulo para lá produzir a primeira coletânea, que chamava Favela por conta própria e eu comecei a colar com os caras. E eles me ensinaram a produzir. Aí comecei a fazer umas rimas. Os caras falaram “você em bastante talento” e quem escutava falava o mesmo. A partir daí, comecei a acreditar mais. Foi quando comecei a querer fazer uns sons que eu queria ouvir mas não via ninguém fazendo. Começou realmente como uma parada para mim, para desabafar. Comecei a fazer porque eu precisava ouvir mesmo. Eram coisas que eu queria ouvir e que gostaria que a rapaziada do meu bairro e as pessoas próximas de mim ouvissem. Depois comecei a querer que a minha cidade ouvisse. Foi bem degrau por degrau.
Como você equilibra as demandas de rapper e produtor?
Tem o meu processo como rapper e o meu processo como produtor. Algumas vezes eu faço as duas coisas. Mas algumas vezes eu só escrevo. Tem uma diferença entre produtor e beatmaker. Eu sou um produtor sempre das minhas músicas. Algumas eu não fiz o beat e algumas eu dividi e produção. Por exemplo, você pega a música “Enquanto Recomeço”, do último disco, é um beat do 808 Luke, que foi produzido por mim e pelo Nave. O cara produz o beat e manda pra mim. Eu falo: “vamos acelerar isso aqui, vamos colocar tal elemento, vamos trocar esse timbre, vamos fazer tal coisa.” O Nave vai lá, me ajuda a executar, dá ideias também: “acho que isso aqui devia ser de tal jeito”. Depois que a gente termina o beat, eu vou escrever a letra. Às vezes o beat já vem mais pronto, eu já pego e só escrevo a letra, depois vou fazer produção em cima. Ou seja, vou trocar um timbre de teclado, penso em um solo de sax, aqui vou trocar por um baixo tocado. É mais ou menos o Kanye West faz hoje em dia. Ele tem um processo parecido com o meu, ele começou como produtor. Então eu fazia meus próprios beats sempre. A partir de certo ponto, passei a dividir. Às vezes faço meus próprios beats também. No último disco tem algumas músicas. A introdução, o rascunho do beat, é meu. “Contigo para o que for” o beat é totalmente meu.
E como é o seu processo de composição?
Hoje em dia eu escrevo de Evernote, bem tecnológico. Mas ainda escrevo algumas vezes em papel de caderno porque muitas vezes você não quer estar nem no ambiente de estúdio. Você está ali na sala da sua casa, escutando alguma coisa e tal, e vem umas ideias de umas rimas e você escreve. Eu sempre tenho uns cadernos e umas canetas na sala que eu escrevo ainda. São os mesmos cadernos. Como é bagunçado, eu não escrevo uma página depois da outra, eu parto como se fosse uma bíblia e começo a escrever na página que cai. Tem caderno ali com música de 2019, você vira uma página e tem uma de 2010, uma rima solta. É legal porque tem dias que eu consulto aquele caderno, em que a maioria das coisas nem sai, só rascunhos. Aí eu encontro ideias perdidas, que eu nunca usei, mas que estão ali pois escrevi algum dia.
Roteiro pra Aïnouz, Vol. 2 te colocou em um novo patamar como artista. Como você situa esse disco na sua carreira?
Eu fui crescendo degrau por degrau como artista e quando chegou no ponto do RPA2 tinha uma expectativa muito grande para o meu disco. Qualquer coisa que eu fizesse bem-feita ia ter um impacto muito grande. E eu tenho um cuidado muito grande com a minha produção, de ter uma estética alinhada ao discurso e com a produção musical e a sonoridade. Eu trabalho a obra com uma certa continuidade. Muitas coisas que eu falo lá no Caro Vapor (2013), a galera foi entender depois do RPA2, porque ela deu elementos para a galera entender aquilo. Sabendo disso, eu também utilizei esse fato de que eu sabia que tinha uma possibilidade de ficar mais popular com esse disco, justamente por causa do momento em que a gente estava e continua, eu quis também que fosse um disco que continuasse o que eu estava querendo dizer na trilogia do Roteiro para Ainouz, que fizesse parte dessa parada, mas que tivesse coisas novas que eu gostaria que fossem ditas, novas propostas para novos caminhos – tudo isso pensando em discurso e linha política. De certa eu dei uma equilibrada.
Eu podia ter feito algo que fosse mais popular, mas como eu sabia que tinha uma possibilidade boa de popularizar a minha música, eu também coloquei elementos que eu queria colocar, de caminhos que eu queria propor para o rap, como estética, como produção musical e como discurso. E deu muito certo. Eu mesclei muitas coisas. Eu passeio no disco por tudo o que está rolando no mainstream do hip-hop, todos os subgêneros do hip-hop. Tem drill, tem vários segmentos do trap, tem afrobeat. Tem muita coisa do que está rolando. Mas não fica um disco solto porque apesar de ter essas coisas todas, tudo ali está com a minha identidade. É a minha leitura de cada coisa dessa. O que torna o bagulho muito único, muito meu. Não soa como alguém atirando para todo lado. Ao mesmo tempo, eu tenho a possibilidade de estar inserido nesses contextos, onde esses subgêneros do hip hop estão em alta. Eu dosei isso tudo para poder equilibrar a parada e dizer o que eu tinha para dizer, alcançar as pessoas que eu queria alcançar. Fui muito bem-sucedido nessa proposta.
Quais as suas primeiras impressões sobre o novo governo Lula?
Quando você começa a entender a realidade brasileira, você percebe que mudar o Brasil é uma coisa difícil. A gente tem problemas enraizados na chegada dos portugueses em 1500. Acredito que temos muitos pontos positivos e negativos porque é uma coalisão muito grande de partidos que às vezes têm linhas políticas diferentes. Eu discordo em muitos aspectos de estratégia, mas ao mesmo tempo tem muita coisa boa acontecendo. É um pouco ambíguo o que eu penso sobre o que está acontecendo no governo agora.
A gente precisava de uma linha econômica mais radical pra conseguir fazer o Brasil ser um país que caminha em direção a ser um país desenvolvido, com soberania em todos os sentidos. Soberania vai desde você ter controle sobre sua matriz energética até você ter controle dos dados do que seu país produz. Hoje em dia o novo poder mundial está no controle dos dados. Se os nossos dados são controlados por três empresas estrangeiras e a gente não tem controle sobre isso, a gente está a mercê de estrangeiros. Tenho divergências com a linha que é seguida, mas pelo menos a gente saiu de uma época muito conturbada. O objetivo desse governo foi, em primeiro lugar, derrubar o fascismo no Brasil. E nesse sentido estamos na direção certa.
Você more em São Paulo desde 2013. Qual é a sua visão sobre a cidade hoje?
São Paulo é realmente uma cidade de extremos. Ela tem pontos muito positivos. É um lugar de encontros. Isso é o mais interessante de São Paulo. É uma cidade multicultural. As pessoas que trabalham comigo são cada uma de um lugar. Tem paulista, a minha manager é de BH, tem eu que sou cearense, os meus amigos da periferia de São Paulo todos têm uma família que, muitas vezes é uma família nordestina. Tem muitos nordestinos em São Paulo que são recém-chegados imigrantes, mas outros são de segunda geração: os pais são nordestinos. Esse caldeirão cultural de São Paulo é muito interessante, uma coisa que eu gosto muito. E a programação cultural da cidade é muito interessante. Se você está em São Paulo, você tem acesso a museus, teatros e shows de uma forma que nenhum outro lugar do Brasil tem nesse nível. Isso é uma coisa muito boa em São Paulo. É a nossa maior metrópole, é o lugar mais cosmopolita, é onde chega tudo primeiro.
Por outro lado, é uma cidade muito desigual, que tem um apartheid social e racial muito nítido. Se você anda nos bairros novos de São Paulo, você tem um choque de como uma cidade tão rica pode ser tão separada do seu povo. A gente tem uma pequena São Paulo onde tudo gira, onde estão todos os aparelhos culturais da cidade, onde o transporte funciona melhor, onde as coisas funcionam melhor. Quando você vai para a periferia de São Paulo, aí você vê a São Paulo de verdade. E essa também é a São Paulo que eu gosto. São as pessoas que fazem essa cidade funcionar. Aí é onde você vai encontrar os fluxos, onde você vai encontrar o funk de São Paulo, nossa música eletrônica mais original, florescendo. O samba de São Paulo você também vai encontrar mais para os extremos. É isso: São Paulo é uma cidade de muitas cidades. A zona norte é uma cidade, a zona sul é uma cidade, a zona oeste é uma cidade… e tem essas ambiguidades todas aí.
Você participou recentemente do desfile do designer cearense David Lee na SPFW. Você tem ambições no mercado da moda?
Eu tenho grande ambições. A gente está só começando. Eu não tenho uma marca de moda ainda, o que eu faço são roupas do meu marchand. Por exemplo, eu tenho uma camiseta de time que faz parte da estética do disco, que é uma proposta de uma outra camisa da seleção brasileira. Mas eu tenho vontade de fazer coisas mais ambiciosas em moda. E essa parceria com o David Lee, de estar ali no desfile, foi muito bom. Eu conhecia o David, que é um cara que faz um trabalho excepcional em moda, que é muito do que eu acredito. O tem do desfile foi a Feira da Parangaba. Eu me criei indo para essa feira. Nela tem de tudo. Ele diz no tema do desfile: “Feira da Parangaba, onde você encontra tudo, até frutas”. A feira de frutas e verduras é mais uma coisa naquele mundo. Ele pegou essas influências todas e colocou no desenvolvimento estético dele de moda. Isso é uma coisa que eu acredito muito. E eu tenho vontade de fazer parcerias com outros estilistas.
Eu admiro muito as pessoas que trabalham com moda. Acho muito legal o que o Davi fez de continuar em Fortaleza. Ele conseguiu fazer isso, trazendo de volta para a comunidade uma moda acessível. Todos nós temos ambições de fazer coisas grandes, de estar nos grandes palcos, sob grandes holofotes, mas essa geração, cada vez mais, a gente tem uma vontade genuína de trazer de volta para o lugar de onde a gente veio aquilo que a gente absorve quando ganha o mundo. E de uma forma acessível e verdadeira, que traga mais gente, que gere um fluxo de ideias e mercadorias, que faça a gente crescer enquanto comunidade e enquanto seres humanos.
Como é fazer é rap hoje fora do eixo Rio-São Paulo?
A internet e as redes sociais facilitaram bastante os processos, nem se compara a quando eu comecei. Mas resolver, não resolveu porque isso também é uma desigualdade econômica. Hoje eu tenho muito essa visão. Antigamente eu achava que era apenas cultural ou xenofobia, que são coisas que ainda existem. Mas também faz parte disso a dificuldade de recursos. A região nordeste é uma região onde a desigualdade é ainda maior, os recursos são ainda mais limitados. As grandes produtoras de videoclipe e publicidade, os grandes estúdios e emissoras de televisão estão em São Paulo. Rio e São Paulo ainda têm essa vantagem que é grande. Isso não quer dizer que as coisas para alguém em São Paulo é fácil. Nada é fácil no Brasil. Só que pra gente é mais difícil ainda. É como se fosse o dobro da dificuldade. Estamos distantes dessas coisas todas. A gente tem que chegar virtualmente. Enquanto aqui você encontra as pessoas na rua fazendo isso.
O que o público do Coala pode esperar do seu show e quais novidades você tem preparados para os fãs?
Eu tenho um single com o Orochi que vai sair muito em breve, uma parceria que a gente está bolando faz tempo. É um som que está lindo. É uma possibilidade muito boa de ser um grande hit no Brasil. E vários feats estão pra sair agora. Vai sair som com o FBC no disco dele, vai sair som com o Zudzilla no disco que ele vai lançar agora, vai sair som com o Ogi no disco que ele também vai lançar agora. E tem uma música com o Rael ainda, que vai sair em algum momento. Mas eu também estou preparando o meu próprio single [risos]. Para o show do Coala, a gente está preparando um super show. Vai ser o melhor show que a gente fez até agora. Começamos a fazer o show com banda. Eu chamei pessoas que eu sonhei em trabalhar. São músicos que pra mim são dos maiores do Brasil. São o Fernando Catatau e o Thiago França, o melhor guitarrista do mundo e o melhor saxofonista do mundo. Falo sem exagero porque eu realmente não conheço ninguém melhor do que eles no planeta. Conheço gente do mesmo nível, mas que eu goste tanto da sonoridade, da técnica, do que eles criam, eu não conheço.
É um grande sonho pra mim estar com esses dois caras e ao mesmo tempo com uma galera mais nova que também não é menos excepcional. Estou com a Tamiris, que é uma tecladista super f*da. Ela simplesmente arregaça no palco. Também estou com a Beatriz Lima, baixista, que é demais. São duas minas muito jovens, que são grande musicistas, e dois caras muito experientes. Essa composição que a gente fez é muito especial e gostosa no palco. Começamos a fazer esse show há pouco tempo. Como todo show com banda, as coisas vão amadurecendo. E acredito que agora a gente chegou em um ponto legal, de estar com um show ideal. E no Coala vai ser uma oportunidade muito boa de mostrar isso pra muita gente.
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