Aquele manto/relíquia

Era uma vez, assim começavam as histórias que em pequenino me contavam, naquele doce embalar que era antecâmara de dormir, sonhar coisas cor-de-rosa e viajar no tempo do futuro em carruagem de sonho. Era uma vez um manto velho, relíquia que o tempo fez veneranda, depositado na fé dos que acreditam, envolto numa mística que transcende o real e poisa, ao de leve mas fundo em cada um de nós, como poalha que se não sacode. Era um manto peregrino porque alguém se havia apossado dele como talismã para a sua crença e o propósito de o tornar eterno o levou consigo como quem leva um amor no peito. Na sua ingenuidade não percebeu que uma relíquia se não conserta, mas apenas se venera, coisa rara que se assume o valor de um tesouro; nesta subjetividade é porto seguro para as dificuldades. Ali estava o manto/relíquia, resguardado na igreja, exposto à veneração dos fiéis de Nossa Senhora de Guadalupe daquela freguesia. Era dia de festa e a aldeia engalanara-se para prestar preito à sua Senhora. Desculpem-me por evocar a memória de minha mãe: foi de mãos postas, ao pé do altar do seu regaço, que eu balbuciei as minhas orações infantis, a Nossa Senhora de Guadalupe; nós éramos velhos vizinhos. E, por esta proximidade, a minha mente infantil, entendia que éramos merecedores de sua atenção privilegiada. Rezávamos por todos: pedíamos que mandasse um alívio a cada sofrimento. E o meu coração puro e inocente, “ia ao trono da Senhora pedir, como ainda vai, que desse a cada nudez um pano do seu manto e a cada crime o seu perdão de mãe”. E foi assim que me habituei a olhar para Nossa Senhora de Guadalupe; foi por isso que esta devoção “ficou sempre abençoando a minha vida inteira/ como junto de um leão um sorriso divino/ como sobre uma forca um ramo de oliveira”. Estive lá há pouco tempo, estive diante do manto/relíquia e senti naquele tecido o pulsar das preces de toda a gente daquela aldeia minhota. Naquele manto/relíquia não cabe a história caricata de Eça de Queiroz; aquele manto/relíquia é a materialização da fé de todo um povo que no íntimo Nela acredita porque Nela crê. Para os que acreditam nenhuma palavra é preciso, para os que não acreditam nenhuma palavra é possível. Aquele manto/relíquia é maior do que a freguesia, muito maior porque se projeta na extensão desta fé que não tendo limites geográficos, galga distâncias, espalha preces em desfolhada de esperanças. Este mesmo povo que nasceu com os olhos virados para a capelinha onde A venera, que A honra todos os anos com uma festa/homenagem, que A ama como só a fé sabe amar, são crentes virados para aquele manto porque manto e Senhora, ambos são a mesma fé. Se o escritor dos Maias tivesse sentido esta fé, não a teria ridicularizado com o fez no seu livro A Relíquia. Mas o que é a fé? A fé é como o bom perfume, sente-se mesmo quando o frasco está oculto. Senhora da minha terra, perdoai o meu atrevimento por Vos pedir compaixão para aquele que chorou no meu ombro porque não pode valer à sua mulher que tem Alzheimer.

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